A educação digital cresce. Mas de forma desigual, como quase tudo na América Latina. Enquanto algumas escolas já contam com lousas interativas e plataformas de aprendizado on-line, outras ainda lutam para garantir uma conexão estável ou até mesmo dispositivos suficientes para que cada aluno tenha acesso a um teclado. Essa lacuna, visível e persistente, vai além de uma simples questão de recursos; é também um desafio pedagógico e social que nos impõe repensar a maneira como ensinamos e aprendemos.
Nesse contexto, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Fundación ProFuturo, programa de inovação no ensino promovido pela Fundación Telefónica e ‘la Caixa’, decidiram unir esforços para elaborar o Segundo Mapeamento de Boas Práticas em Educação Digital nas Américas. A iniciativa tinha como objetivo identificar, documentar e compartilhar experiências educacionais que, além do impacto da tecnologia, demonstrassem a verdadeira capacidade de transformar a sala de aula.
Uma ferramenta para conhecer, inspirar e transferir
O Segundo Mapeamento de Boas Práticas em Educação Digital das Américas é muito mais do que um simples catálogo de projetos. É uma ferramenta criada para conhecer, inspirar e transferir. Seu principal objetivo foi identificar experiências concretas que utilizam as tecnologias digitais como alavanca para a melhoria educacional, analisá-las com rigor e compartilhá-las de maneira acessível para aqueles que buscam novas formas de ensinar.
A convocatória estava aberta a dois tipos de atores: por um lado, instituições educativas (escolas primárias, secundárias e até centros de educação infantil) e, por outro, organizações da sociedade civil com projetos em contextos formais ou não formais. Entre outubro e novembro de 2024, foram recebidas 179 inscriçõesde 17 países, uma amostra significativa que reflete a vitalidade e diversidade do ecossistema educacional latino-americano. Para que uma experiência fosse considerada uma « boa prática » admissível, ela deveria atender a quatro requisitos: estar fundamentada no direito à educação, integrar as tecnologias digitais de forma significativa, apresentar evidências de seus resultados e ter continuidade ao longo do tempo. Além desses requisitos mínimos, as iniciativas foram avaliadas com base em cinco critérios-chave: relevância (a coerência entre objetivos e ações), centralidade da tecnologia (que não fosse apenas um acessório), sistematização (a capacidade de documentar processos), replicabilidade (a possibilidade de adaptação a outros contextos) e enfoque em equidade (o impacto em populações vulneráveis).
O produto final é um repertório inclusivo, que abrange desde projetos de robótica em áreas rurais até redes de formação e capacitação dos professores em plataformas abertas. Porque, neste mapeamento, inovar significa tanto usar ferramentas digitais quanto fazê-lo com um propósito claro e socialmente valioso.
Radiografia das experiências registradas
Como já mencionado, o mapeamento reuniu um total de 179 experiências, um volume que reflete a riqueza e diversidade das iniciativas na região. As propostas abrangem uma ampla gama de contextos geográficos, institucionais e pedagógicos, demonstrando que a inovação no ensino não é um privilégio exclusivo dos grandes centros urbanos ou das escolas mais bem equipadas.
Em termos de participação por país, destacam-se o México, com 37% das experiências; a Colômbia, com 22%; e o Equador, com 10%. Peru e Argentina também contribuíram com um número significativo de projetos, confirmando que o interesse pela educação digital vai de norte a sul.
O contexto de aplicação revela outra chave importante. Embora a maioria das práticas tenha sido desenvolvida em contextos urbanos (54%), um terço foi implementado em ambientes mistos, que combinam áreas urbanas e rurais, e 13% ocorreram exclusivamente em áreas rurais. Esse dado é especialmente relevante, pois mostra que a tecnologia também está chegando (embora com dificuldades) a escolas pequenas e comunidades remotas.
Por níveis educacionais, o predomínio é da educação secundária (52% das práticas), seguida pela educação primária (41%) e, em menor medida, pela educação infantil (4%). Essa distribuição reflete a tendência de priorizar a formação digital em estágios intermediários e avançados da escolaridade, onde a alfabetização tecnológica tem um peso determinante. No que diz respeito aos destinatários, 79% das iniciativas se concentraram diretamente em estudantes, mas mais da metade também incluiu professores (54%) e 36% envolveram famílias ou a comunidade educacional. O enfoque inclusivo é uma característica transversal: 114 práticas foram voltadas para populações em situação de pobreza ou vulnerabilidade, 52 para pessoas com deficiência, 46 para migrantes e 34 para povos indígenas.
No total, essas ações impactaram mais de 340.000 estudantes e 208.000 professores, um impacto que confirma a dimensão real, e não apenas declarativa, dessas propostas.
Quais tecnologias estão sendo usadas?
Ao analisarmos detalhadamente as tecnologias utilizadas nessas experiências, o mapeamento revela um pragmatismo claro. Não há grandes implementações de última geração. A ferramenta mais comum continua sendo o computador, presente em 85% das práticas. Seguem-se os celulares, que aparecem em 68% dos projetos. Esse dado tem uma explicação simples: são dispositivos cada vez mais ubíquos e, em muitos casos, o único recurso disponível para estudantes e professores.
Após esses recursos básicos, destacam-se as plataformas de gestão de aprendizagem (36%), que permitem organizar conteúdos, acompanhar o progresso dos estudantes e criar espaços virtuais de interação. Também aparecem as câmeras e microfones (47%), as tablets (44%) e diversos programas de criação multimídia, que mostram como as práticas se apoiam em recursos combinados. Porque, se algo caracteriza a maioria dessas experiências, é a combinação de tecnologias: muito poucas dependem de uma única ferramenta.
Essa mistura é mais uma estratégia frente à escassez do que um luxo. Muitas escolas aproveitam o que têm à mão: um projetor emprestado, um celular compartilhado, um software gratuito. O resultado é uma abordagem pedagógica que não depende da sofisticação do dispositivo, mas de seu uso com um propósito educacional.
Ainda assim, o mapeamento também documenta um crescente interesse por tecnologias interativas. A robótica educacional, a programação com placas como MicroBit, a realidade virtual e aumentada, e a criação de conteúdos digitais estão ganhando espaço em salas de aula rurais e urbanas. Embora ainda sejam minoritárias, essas ferramentas trazem um valor simbólico e metodológico:ensinam que a educação digital pode ser ativa, criativa e conectada aos idiomas contemporâneos.
Objetivos pedagógicos: cinco enfoques de transformação
Além de reunir experiências, o mapeamento pediu a cada instituição que explicasse o motivo pelo qual usava a tecnologia. As respostas a essa pergunta permitiram identificar cinco principais objetivos pedagógicos, que definem as prioridades educacionais da região.
O primeiro e mais frequente foi o desenvolvimento de competências digitais, declarado por 65% das práticas. Aqui estão projetos que ensinam os estudantes a programar, usar plataformas de aprendizagem, criar conteúdos multimídia ou entender os ambientes virtuais onde transcorre grande parte de suas vidas. Em um continente marcado pela lacuna de habilidades digitais, essa intenção é tanto estratégica quanto urgente.
O segundo objetivo foi o enriquecimento do ensino dos conteúdos escolares (61%). Esse enfoque mostra que a tecnologia não é apenas uma área de conhecimento, mas um recurso transversal que pode apoiar a compreensão de matemática, ciências, língua ou história. Desde o uso de simuladores climáticos até a criação de videogames educativos, as experiências confirmam que o digital pode enriquecer as formas de aprender.
A educação inclusiva e equitativa ocupa um lugar de destaque, com 57,5% das práticas voltadas para atender populações vulneráveis: estudantes em situação de pobreza, pessoas com deficiência, migrantes ou comunidades indígenas. Aqui, a tecnologia aparece como uma ferramenta de compensação, capaz de reduzir distâncias e oferecer oportunidades onde antes havia apenas carências.
O quarto objetivo, declarado por 38,5%, é o fortalecimento da formação e do desenvolvimento profissional docente. Esse aspecto reflete que os professores não são meros intermediários, mas protagonistas da transformação educacional. Formá-los no uso pedagógico das tecnologias e apoiá-los na apropriação crítica é uma condição essencial para o sucesso das iniciativas.
Por fim, outro 38,5% das práticas visa a personalização da aprendizagem, adaptando recursos e metodologias aos ritmos, interesses e necessidades de cada estudante. Essa linha, que exige informações sistemáticas e tecnologias flexíveis, antecipa uma mudança de paradigma na relação entre escola e aluno.
É importante destacar que muitas experiências não se limitam a um único objetivo. Um projeto pode, simultaneamente, desenvolver competências digitais, enriquecer conteúdos curriculares e atender a populações vulneráveis. Essa convergência de finalidades é, na verdade, um dos aspectos mais valiosos domapeamento: ele demonstra que a tecnologia educacional não deve ser vista como algo isolado, mas sim como um ecossistema de possibilidades que potencializa o acesso, a qualidade e a continuidade do aprendizado.
Além da tecnologia: o que caracteriza uma boa prática?
Uma boa prática educacional não se define apenas pela ferramenta utilizada. Nem mesmo pela quantidade de dispositivos conectados na sala de aula. O mapeamento deixa claro que o que realmente importa não é o « o quê », mas o « como » e, principalmente, o « para quê » a tecnologia está sendo utilizada.
A partir da análise das 179 experiências, é possível identificar alguns elementos comuns que explicam por que certas iniciativas têm um impacto real e duradouro. O primeiro deles é a contextualização: cada projeto parte de um diagnóstico preciso das necessidades de sua comunidade. Não há soluções prontas, mas respostas feitas sob medida, que levam em consideração o nível de conectividade, os conhecimentos prévios e as características socioculturais dos destinatários.
Outro aspecto essencial é a participação ativa. As experiências mais valiosas envolvem estudantes, famílias e professores como protagonistas que desenham, produzem e avaliam. Esse compromisso compartilhado fortalece o senso de pertencimento e contribui para a sustentabilidade das práticas. A sistematização também é fundamental. Documentar processos, registrar avanços e refletir sobre os resultados garante que as iniciativas não fiquem apenas como histórias pontuais. Graças a essa documentação, outras instituições podem se inspirar nas experiências e adaptar o que foi aprendido.
Um quarto aspecto importante é a capacidade de ser escalável ou adaptável. Replicar não significa copiar sem mais, mas identificar os princípios que podem ser transferidos para outros contextos. Projetos que utilizam tecnologias acessíveis, combinam metodologias ativas e disponibilizam guias didáticos são, nesse sentido, os mais valiosos para ampliar o impacto.
Por fim, destaca-se a importância do enfoque de equidade. Avaliar uma prática não apenas pela inovação técnica, mas também por sua contribuição para a justiça educacional (por exemplo, reduzindo desigualdades de gênero, renda, território ou deficiência), é uma decisão ética e política. Porque, na América Latina, inovar é (ou deveria ser) uma forma de democratizar oportunidades.
Impacto e continuidade: os desafios para sustentar as boas práticas
Fazer com que uma experiência educacional inovadora surja já é um grande desafio. Mas o maior desafio, muitas vezes, vem depois: garantir que ela sejamantida ao longo do tempo e integrada de forma orgânica ao sistema educacional.
O mapeamento identifica três condições essenciais para que essas práticas prosperem além da vontade individual de um professor ou do entusiasmo de uma gestão. A primeira é a formação contínua. Nenhuma tecnologia, por mais promissora que seja, funciona se os profissionais responsáveis pela implementação não receberem capacitação pedagógica e acompanhamento adequado. O desenvolvimento profissional docente, constante e atualizado, é a base sobre a qual todas as práticas sustentam-se.
A segunda condição é a infraestrutura: dispositivos suficientes, conectividade estável e manutenção técnica. Muitas das iniciativas mapeadas enfrentam limitações de equipamentos, o que afeta diretamente seu alcance e sustentabilidade.
O terceiro fator essencial é o apoio institucional. Quando a gestão da escola, a administração local e as políticas públicas reconhecem que a inovação é prioritária, as práticas têm muito mais chances de se consolidar e serem replicadas. Sem esse apoio, mesmo as melhores ideias podem se diluir com o tempo.
A longo prazo, é imprescindível criar ambientes que favoreçam a inovação: culturas organizacionais que valorizem a experimentação e aceitem o erro como parte do aprendizado coletivo. Nesse processo, as parcerias público-privadas e as redes colaborativas desempenham um papel decisivo. Articular recursos, compartilhar experiências e divulgar resultados são estratégias fundamentais para transformar o esforço individual em uma mudança sistêmica.
Rumo a uma educação digital com propósito
Este Segundo Mapeamento de Boas Práticas em Educação Digital das Américas é uma fotografia coletiva do que já está ocorrendo em escolas e organizações que, com recursos limitados, mas com muita vontade e determinação, tentam nos mostrar que outra educação é possível.
O desafio agora é continuar compartilhando, adaptando e expandindo essas práticas para que seu impacto não fique restrito aos locais onde surgiram. O valor do mapeamento está em ser um recurso dinâmico e útil para aqueles que acreditam que a transformação educacional começa nas salas de aula, com uma visão de futuro e a disposição para a mudança.
Para explorar essas experiências em detalhes, acessar materiais e conhecer mais casos inspiradores, você pode consultar o mapa interativo e a publicação completa.