O grande paradoxo: transformação digital com docentes analógicos
Nos últimos anos, a transformação digital da educação converteu-se em um mantra repetido à exaustão em fóruns internacionais, planos de governo e estratégias institucionais. Multiplicam-se os discursos sobre inovação, sobre o poder da inteligência artificial e a necessidade de preparar os estudantes para um futuro incerto, porém digital. No entanto, ao descer dos documentos oficiais para o terreno da escola, o cenário é bem menos promissor: nossos docentes, os verdadeiros agentes de mudança nas salas de aula, seguem carecendo das competências digitais mais elementares.

O estudo Aproximación a las competencias digitales de docentes en América Latina, elaborado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pela Fundação ProFuturo, nos mostra uma fotografia alarmante. Com dados de mais de 28 mil docentes de seis países da América Latina, o relatório mostra que, enquanto falamos constantemente de inovação tecnológica, a maioria daqueles que deveriam levá-la à sala de aula não dispõe das ferramentas para fazê-lo.
O paradoxo é evidente. Espera-se que os docentes sejam mediadores da cultura digital, guias em um mundo saturado de informação, orientadores diante dos riscos e possibilidades das tecnologias emergentes. E, no entanto, grande parte deles se vê obrigada a improvisar, a se mover por tentativa e erro, sem o respaldo de uma formação sistemática que acompanhe suas necessidades reais. A brecha digital docente, longe de se fechar, ameaça perpetuar a desigualdade educativa em uma região em que a qualidade e a equidade seguem sendo tarefas pendentes.
Radiografia das competências digitais docentes
O estudo do BID e da ProFuturo parte de um marco conceitual amplo que entende as competências digitais docentes como um conjunto de habilidades distribuídas em três dimensões: pedagógica, cidadania digital e desenvolvimento profissional. Para medi-las, utiliza uma adaptação do Guia Edutec, desenvolvido originalmente em 2016 pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB) e posteriormente adaptado e disponibilizado como ferramenta de código aberto pela Fundação ProFuturo.
A Ferramenta de Autoavaliação de Competências Digitais, baseada no Guia Edutec, foi desenhada como um instrumento de autoavaliação: os docentes respondem a um questionário que permite diagnosticar seu próprio nível de competência digital em diferentes áreas. A ferramenta gera relatórios automáticos que classificam os docentes em diferentes níveis de domínio (exposição, familiarização, adaptação, integração e transformação), com descritores específicos para cada etapa. Esses descritores incluem, por exemplo, desde a simples capacidade de usar um recurso digital básico até a integração plena de tecnologias em processos pedagógicos inovadores.
Os resultados de uma amostra de mais de 28 mil docentes de seis países da América Latina revelam um panorama preocupante. Apenas 27% dos docentes consideram que alcançam um nível básico no uso pedagógico da tecnologia: desenhar atividades de aprendizagem que integrem recursos digitais, avaliar por meio de plataformas ou combinar metodologias tradicionais com ferramentas inovadoras. Ou seja, três de cada quatro professores reconhecem que carecem dos fundamentos necessários para incorporar as TIC à prática cotidiana de sala de aula.
No que diz respeito à cidadania digital, apenas 29% superam o limiar mínimo. Essa dimensão, que abrange a capacidade de ensinar os estudantes a usar a tecnologia de forma ética, segura e responsável, configura-se como um déficit especialmente grave em um momento em que proliferam fenômenos como a desinformação, o cyberbullying ou o uso problemático das redes sociais.
A terceira dimensão, o desenvolvimento profissional, apresenta cifras um pouco mais alentadoras: 40% dos docentes alcançam o nível básico. No entanto, o que esse dado indica é que os professores estão recorrendo à tecnologia principalmente para sua própria formação — acesso a cursos online, busca de materiais ou participação em comunidades virtuais — mais do que para transformar a experiência de aprendizagem de seus estudantes.
O contraste é cristalino: os docentes se beneficiam da tecnologia para crescer individualmente, mas não conseguem trasladar esse potencial ao espaço mais decisivo, o da sala de aula. A inovação pedagógica, que é o verdadeiro catalisador de uma educação mais equitativa e de qualidade, continua sendo a dimensão mais atrasada. E, enquanto isso, os discursos sobre digitalização educativa seguem projetando uma imagem de mudança que a realidade, no chão da escola, ainda desmente.
Fatores que condicionam a brecha
Os baixos níveis de competência digital docente na América Latina não se distribuem de maneira homogênea. O estudo permite identificar uma série de fatores que incidem significativamente nos resultados, revelando a complexidade do problema e a necessidade de abordá-lo a partir de múltiplas frentes.
A idade, em primeiro lugar, marca diferenças evidentes. Os docentes mais jovens costumam mostrar maior autoconfiança no uso da tecnologia, fruto de uma familiaridade geracional com dispositivos digitais. No entanto, essa vantagem nem sempre se traduz em um uso pedagógico mais sofisticado. A habilidade para manejar redes sociais ou aplicativos não garante por si só a capacidade de integrá-los em práticas didáticas estruturadas e com valor educativo. A competência digital docente é muito mais que destreza técnica: é, sobretudo, competência pedagógica.
O gênero constitui outro fator significativo. Os homens tendem a se autoavaliar com níveis mais altos de competência que as mulheres, embora diversos estudos alertem que essa diferença pode refletir mais bem vieses de percepção do que desigualdades reais nas habilidades. A subestimação feminina e a superestimação masculina, fenômenos amplamente documentados na literatura sobre autopercepção, sugerem que a brecha de gênero em competências digitais docentes poderia ser, ao menos em parte, uma brecha de confiança.
O nível de formação acadêmica também exerce influência. Os docentes com pós-graduação apresentam maiores probabilidades de alcançar um nível básico em todas as dimensões, em comparação com aqueles que contam apenas com estudos universitários ou técnicos. Isso parece indicar que a exposição a processos formativos mais complexos — nos quais o uso de recursos digitais é mais comum — contribui para desenvolver certa desenvoltura no manejo da tecnologia.
Mais determinante ainda é a formação específica em TIC. Ter participado de cursos de capacitação em tecnologia educativa aumenta em até vinte pontos percentuais a probabilidade de superar o limiar mínimo de competência digital. Essa constatação confirma algo que deveria ser óbvio, mas que muitas vezes é ignorado: as competências não surgem de maneira espontânea; exigem políticas de formação sistemática e contínua.
Por fim, a área de ensino marca uma diferença clara. Os docentes de disciplinas STEM (ciências, matemática, tecnologia) tendem a mostrar melhores resultados do que aqueles que ensinam humanidades ou educação infantil. Isso reflete tanto a natureza de suas disciplinas, mais próximas do uso de ferramentas digitais, quanto a maior disponibilidade de recursos específicos para essas áreas.
Em conjunto, esses fatores confirmam que a brecha digital docente não é uma questão meramente individual. É uma construção social e estrutural, resultado da interação entre idade, gênero, formação acadêmica, acesso à capacitação e campo disciplinar. Enfrentá-la exige, portanto, uma abordagem integral que não se limite a distribuir dispositivos ou instalar conectividade, mas que invista em capital humano e em políticas de equidade.
Rumo a uma formação docente verdadeiramente transformadora
Como já assinalamos várias vezes neste Observatório, o déficit de competências digitais docentes não será resolvido com mais dispositivos nem com simples programas de conectividade. A experiência das últimas duas décadas mostra claramente que a brecha não é tecnológica, mas pedagógica. Por isso, tanto o BID quanto a ProFuturo insistem que a chave está na formação docente: uma formação contínua, situada, prática e com capacidade de transformar a cultura escolar.
No que se refere a essa formação, o estudo identifica vários princípios essenciais. Em primeiro lugar, a capacitação deve ser contínua. A alfabetização digital não pode se reduzir a cursos pontuais, ministrados uma vez e esquecidos após alguns meses. A velocidade da mudança tecnológica exige acompanhamento permanente, com espaços de atualização e reciclagem profissional que permitam aos docentes manter-se em dia.
Em segundo lugar, a formação deve ser situada e prática. De pouco servem capacitações padronizadas, descontextualizadas e excessivamente teóricas. Os professores precisam de oportunidades para experimentar em seu próprio contexto, com seus estudantes e recursos reais. É na prática, na prova e no erro, que se constroem competências duradouras.
Um terceiro princípio é a colaboração entre pares. A pesquisa internacional demonstrou que a aprendizagem docente é mais eficaz quando ocorre em comunidades profissionais: grupos de professores que compartilham experiências, se observam mutuamente e constroem conhecimento coletivo. A tecnologia pode potencializar essas redes, desde que exista uma política que as promova.
O relatório ressalta, além disso, a necessidade de reforçar a dimensão da cidadania digital. Ensinar os docentes a manejar ferramentas não é suficiente. É preciso formá-los para guiar seus estudantes no uso seguro, crítico e responsável da tecnologia. Em um ambiente saturado de informação, repleto de notícias falsas, discursos de ódio e riscos para a privacidade, essa competência torna-se tão importante quanto a própria alfabetização em leitura ou escrita.
Por último, os autores reivindicam políticas públicas coerentes e sustentáveis. A formação docente não pode depender de iniciativas isoladas, muitas vezes ligadas à cooperação internacional ou a projetos de curto prazo. Requer-se um marco nacional que articule esforços, garanta financiamento estável e estabeleça sistemas de avaliação e diagnóstico que permitam conhecer com precisão as necessidades dos professores.
Em outras regiões, como o Uruguai com o Plano Ceibal ou Portugal com o Programa de Competências Digitais para Docentes, foram dados passos importantes nessa direção. A América Latina já dispõe de experiências valiosas, mas falta o salto à escala nacional e regional. Só assim será possível transformar a retórica da inovação digital em uma realidade cotidiana para milhões de estudantes.
Vontade política, investimento sustentado e mudança de enfoque
A fotografia oferecida pelo estudo do BID e da ProFuturo é clara e contundente: os docentes da América Latina ainda não dispõem das competências digitais necessárias para que a transformação educativa seja algo mais que um slogan. Enquanto o discurso oficial insiste na inovação tecnológica, nas salas de aula prevalecem a improvisação e a insuficiência formativa. A brecha digital docente não apenas continua existindo, como ameaça se ampliar se não forem adotadas medidas decididas e sustentadas.
A falta de preparação digital dos professores incide diretamente na qualidade das aprendizagens, na equidade de oportunidades e na capacidade dos sistemas educativos de responder aos desafios de uma sociedade em constante mutação tecnológica. Por isso, não se trata de um obstáculo menor. Onde os docentes não estão preparados, a digitalização da educação não passa de um miragem. E, como sempre, os mais prejudicados são os estudantes vulneráveis.
Fechar essa brecha exige vontade política, investimento sustentado e uma mudança de enfoque: entender que a transformação digital não se alcança com infraestrutura ou aplicativos, mas com capital humano. Para isso, também é fundamental (e nessa linha se encontra o desenvolvimento e a adaptação da Ferramenta de Autoavaliação) que os docentes possam reconhecer seu ponto de partida e tenham acesso a oportunidades formativas pertinentes. Mas também é necessária uma disposição ativa por parte do professorado para crescer, melhorar e fortalecer suas competências. Os países que avançaram nessa direção o fizeram situando a formação docente no centro de suas políticas. A América Latina não pode se permitir outra coisa: sem professores digitalmente competentes, não haverá inovação possível nem educação de qualidade para todos. E perder essa oportunidade significaria condenar mais uma geração a uma educação desatualizada, desigual e desconectada das realidades do século XXI.


