Na era digital, o bullying escolar ultrapassou as fronteiras físicas para se manifestar no ciberespaço. De acordo com uma pesquisa da UNICEF em 30 países, um em cada três jovens foi vítima de cyberbullying, e um em cada cinco faltou à escola devido a essa forma de violência. Esse fenômeno não distingue nações desenvolvidas de em desenvolvimento, evidenciando um problema global que afeta profundamente o bem-estar e a educação de crianças e adolescentes.
A rápida adoção de tecnologias digitais pelos jovens superou, em muitos casos, a capacidade de pais, educadores e sistemas educacionais de fornecer uma orientação adequada. A falta de competências digitais, pensamento crítico e alfabetização midiática deixa os menores vulneráveis aos riscos do ambiente digital, incluindo o cyberbullying.
O ambiente escolar, tradicionalmente concebido como um espaço de proteção e socialização, enfrenta agora o desafio de preparar seus alunos para atuarem de forma segura, ética e consciente em ambientes digitais. Retirar a tecnologia das salas de aula pode parecer, à primeira vista, uma solução, mas significa ignorar a raiz do problema: a ausência de competências digitais que permitam às novas gerações compreender, questionar e utilizar a tecnologia de forma construtiva.
Este artigo analisa como a falta de educação digital contribui para o aumento do cyberbullying, a necessidade de integrar o desenvolvimento de competências digitais nos sistemas educacionais e como uma formação adequada pode empoderar os jovens a navegarem com segurança e responsabilidade no mundo digital.
Um problema crescente: dados e tendências do bullying digital
O cyberbullying tornou-se uma preocupação crescente nas comunidades escolares de todo o mundo. Segundo a OCDE, 15% dos adolescentes relataram terem sido vítimas de cyberbullying pelo menos uma ou duas vezes nos últimos meses, e uma pesquisa da UNICEF em 30 países revelou que mais de um terço dos jovens foi vítima de assédio online, e um em cada cinco faltou à escola por causa disso. Redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter são os espaços mais comuns onde o cyberbullying ocorre.
O tempo que os adolescentes passam nas redes sociais aumentou significativamente nos últimos anos. Um estudo da Common Sense Media aponta que os adolescentes passam, em média, mais de oito horas por dia em atividades com tela, muitas vezes sem supervisão adulta ou formação em cidadania digital. No entanto, a conexão precoce e prolongada nem sempre é acompanhada de uma formação adequada para o uso crítico e ético da tecnologia, o que aumenta sua exposição a situações de risco, como o cyberbullying.
Dados da Save the Children em seu relatório Violência Viral (2023) trazem detalhes preocupantes: mais de 529 mil jovens na Espanha sofreram cyberbullying durante a infância. Em quase metade dos casos entre meninas (46,7%) e um terço entre meninos (33,1%), os agressores são colegas do mesmo ambiente escolar ou amigos próximos, o que reforça a dimensão relacional dessa forma de violência. Além disso, práticas como o happy slapping — gravar agressões físicas ou verbais para compartilhá-las em redes sociais — já afetaram mais de 76 mil menores, sendo 61% dos casos cometidos por pessoas conhecidas.
Outros riscos, como a exposição involuntária a conteúdos sexuais ou violentos, afetam um em cada dois adolescentes, moldando de maneira preocupante suas atitudes e percepções sobre convivência e relações humanas.
A tendência é clara: quanto maior o acesso e menor a educação, maior o risco de o ambiente online se transformar em um espaço de violência silenciosa. Preveni-lo exige a integração, desde a infância, do desenvolvimento de competências digitais críticas que permitam aos jovens agir de forma consciente e respeitosa nos ambientes digitais.
A remoção da tecnologia da sala de aula ignora a raiz do problema: a falta de habilidades digitais que permitem que a geração mais jovem compreenda, questione e use a tecnologia de forma construtiva.
Competências digitais: a educação pendente
Enquanto o acesso à internet e a dispositivos tecnológicos se generaliza entre os adolescentes, a aquisição de competências digitais críticas continua sendo uma lacuna em muitos sistemas educacionais. A simples alfabetização técnica — saber usar um dispositivo ou navegar em um aplicativo — não garante o uso ético, seguro nem consciente das ferramentas digitais.
A Comissão Europeia, por meio do quadro DigComp 2.2, define que a competência digital abrange habilidades como a gestão da informação online, a comunicação respeitosa nas redes, a criação de conteúdos responsáveis, a proteção de dados pessoais e a resolução de problemas técnicos. No entanto, diversos estudos alertam que essas competências essenciais não estão sendo sistematicamente ensinadas nem avaliadas na maioria das instituições de ensino.
Entre as dimensões-chave das competências digitais destacam-se:
Alfabetização midiática
Envolve a capacidade de acessar, analisar, avaliar e criar conteúdos em diferentes formatos digitais. Não se trata apenas de saber buscar informações, mas de ser capaz de distinguir entre fontes confiáveis e conteúdos manipulados ou falsos. Estudos recentes da Universidade de Stanford mostram que mais de 80% dos estudantes do ensino médio têm dificuldade em identificar conteúdos patrocinados ou distinguir uma notícia verdadeira de uma desinformação proposital. A alfabetização midiática é essencial para evitar a disseminação de boatos que podem alimentar dinâmicas de bullying, ódio ou exclusão nos ambientes escolares e sociais.
Pensamento crítico digital
Trata-se da capacidade de analisar, de forma reflexiva, o que consumimos e produzimos na internet. Segundo o Relatório de Segurança Online 2023 da Microsoft, 74% dos adolescentes entrevistados relataram ter vivenciado algum risco online, como cyberbullying, discurso de ódio ou ameaças de violência. Frente à cultura da imediatismo, em que a informação é frequentemente compartilhada sem verificação, o pensamento crítico digital ensina a questionar conteúdos, detectar intenções ocultas e agir de forma informada. No contexto do cyberbullying, essa competência é vital para não se tornar um amplificador involuntário de ataques, boatos ou difamações.
Comunicação empática online
Num ambiente em que a comunicação ocorre frequentemente por telas, a empatia digital adquire importância crucial. Compreender que por trás de cada mensagem, comentário ou publicação existe uma pessoa real, com emoções e dignidade, ajuda a conter atitudes de desprezo, ridicularização ou exclusão que podem evoluir para o bullying. Promover a comunicação respeitosa em redes sociais, fóruns e grupos escolares é uma estratégia preventiva de primeira ordem contra o cyberbullying. Isso foi demonstrado por uma pesquisa da Florida Atlantic University, que mostrou que estudantes com níveis mais altos de empatia, especialmente empatia cognitiva, eram significativamente menos propensos a participar de comportamentos de cyberbullying, inclusive aqueles baseados em preconceitos raciais ou religiosos.
Segurança e cidadania digital
Abrange o conhecimento sobre os riscos e as boas práticas para proteger tanto a própria identidade quanto a dos outros na internet. Saber configurar a privacidade nas redes sociais, identificar tentativas de fraude, proteger senhas ou denunciar condutas inadequadas são habilidades fundamentais. Mas também implica compreender os direitos e deveres como cidadãos digitais — incluindo o respeito à privacidade alheia, o uso responsável dos dados pessoais e a promoção de ambientes digitais seguros e justos.
A integração das competências digitais nos sistemas educacionais ainda é limitada e desigual. Essa lacuna educacional deixa milhões de estudantes sem as ferramentas necessárias para identificar notícias falsas, reagir a discursos de ódio ou proteger sua identidade online. Não incorporar sistematicamente a educação digital nas escolas é como preparar os alunos para um mundo que já não existe, onde os riscos digitais não faziam parte do cotidiano. A cidadania digital crítica e responsável deveria hoje ser um eixo central de qualquer projeto educativo.
O papel da escola: ensinar a ser cidadão digital
Diante desse cenário, integrar a educação digital aos sistemas escolares não é uma opção, mas uma necessidade para o desenvolvimento integral dos estudantes no século XXI.
Diversos relatórios de organizações internacionais e pesquisas acadêmicas reforçam essa afirmação. Por exemplo, o estudo Cyberbullying, brecha digital e habilidades digitais para a ciberconvivência demonstra que a aquisição de competências digitais relacionadas à comunicação responsável, criatividade e cidadania online reduz significativamente a participação dos jovens nos papéis de vítima, agressor e observador dentro do fenômeno do cyberbullying.
Da mesma forma, a pesquisa Digital Literacy and Cyberbullying Behavior of Youths in Instagram revela que níveis mais altos de alfabetização digital entre adolescentes estão associados à redução do comportamento de cyberbullying nas redes sociais, concluindo que a alfabetização digital explica 23,7% da variabilidade na conduta agressiva.
Complementando essas evidências, o projeto Civic Online Reasoning (COR), da Universidade de Stanford, apresenta resultados contundentes. Por meio de pesquisas longitudinais realizadas entre 2019 e 2021, o COR demonstrou que adolescentes que recebem formação sistemática em verificação de informações, avaliação de fontes e leitura lateral melhoram significativamente sua capacidade de resistir à desinformação, ao discurso de ódio e a conteúdos manipulados nas redes digitais.
À luz desses achados, remover ou restringir a presença da tecnologia nos ambientes educacionais não é apenas contraproducente — é francamente perigoso. Negar aos estudantes o acesso pedagógico e orientado aos ambientes digitais os expõe a uma maior vulnerabilidade: longe de eliminar os riscos, essa estratégia os agrava, privando os jovens dos conhecimentos críticos necessários para se protegerem, discernirem entre informação verdadeira e falsa e participarem de forma consciente e construtiva da vida pública digital. Como destaca a Anti-Bullying Alliance em seu relatório recente sobre alfabetização midiática e bullying online, as intervenções educativas em competências digitais estão entre os mecanismos mais eficazes para prevenir dinâmicas de violência escolar e fomentar empatia e responsabilidade nos espaços virtuais.
Competências digitais contra a violência: educar para proteger
O bullying e o cyberbullying não são acidentes inevitáveis do mundo digital: são resultado de uma lacuna educacional que expõe crianças e adolescentes a formas de violência para as quais não foram preparados. Os dados revelam uma realidade alarmante: à medida que cresce o acesso à internet, também aumentam as experiências de violência, exclusão e humilhação entre os jovens — muitas vezes causadas por seus próprios colegas.
A falta de competências digitais críticas, pensamento ético e alfabetização midiática agrava essa situação. Sem as ferramentas necessárias para discernir, comunicar com empatia e agir com responsabilidade, os estudantes não apenas são mais vulneráveis como vítimas, mas também podem, sem plena consciência, se tornar agressores ou cúmplices silenciosos. O cyberbullying — mais persistente, mais invisível e mais devastador do que o bullying tradicional — encontra na ausência de educação digital seu terreno mais fértil.
Retirar a tecnologia das salas de aula não resolverá esse problema. Ao contrário: privar os jovens de uma educação consciente e crítica sobre o uso dos ambientes digitais os deixará ainda mais expostos, indefesos diante das dinâmicas de ódio, exclusão e violência que proliferam nas redes sociais. Como demonstram as pesquisas mencionadas neste artigo, formar os jovens em competências digitais reduz significativamente as taxas de cyberbullying e fortalece as capacidades de resistência e autocuidado dos estudantes.
Diante do avanço do assédio online, a resposta não pode ser a proibição nem a ignorância — deve ser a educação. Formar cidadãos digitais críticos é, hoje, uma questão de proteção básica, de justiça social e de dignidade humana. É ensinar que as redes não estão fora da ética, mas são uma extensão da nossa responsabilidade como indivíduos e como sociedade.