Imaginemos um grupo de jovens sentados em círculo, trocando cartas com símbolos enigmáticos e pistas. Não há celulares sobre a mesa, nem computadores ligados em lugar nenhum. À primeira vista, poderia parecer uma aula de literatura ou um jogo de tabuleiro criado pelos próprios professores. No entanto, trata-se de uma aula sobre inteligência artificial. Cada símbolo e cada pista remete a conceitos dessa tecnologia que está revolucionando o nosso mundo: redes neurais, algoritmos, vieses de dados… Um universo que, em nossa mente, costuma estar ligado a telas e linhas de código complexas.
Mas, nessa aula, tudo acontece offline. Como dissemos, não há uma única tela que denuncie que estamos aprendendo sobre novas tecnologias. Essa é, justamente, a ideia por trás de Os Códigos de Sofia, uma iniciativa brasileira pioneira em apresentar a IA de forma inclusiva, lúdica e completamente sem conexão.
Por trás da proposta está a educadora Giselle Santos, que um dia se fez uma pergunta que, em suas próprias palavras, marcou um antes e depois em sua prática pedagógica: “Como podemos ensinar inteligência artificial sem depender da própria IA ou das telas?”. A resposta veio na forma de um conjunto de dinâmicas e guias pensados para que estudantes (e educadores) compreendam conceitos fundamentais sobre aprendizado de máquina, viés algorítmico, ética digital e tomada de decisões em ambientes virtuais — tudo isso sem usar nenhum dispositivo.
Ponto de partida: a necessidade de questionar a tecnologia
Para Santos, a ideia “nasceu de um enorme incômodo” em relação à maneira como os jovens — e grande parte da população — se relacionam com a tecnologia. “Estamos preparando os jovens para um mundo hiperconectado sem ensiná-los a questionar a tecnologia que os cerca”, explica. Em sua experiência, é muito comum presumir que, por terem crescido na era digital, adolescentes e jovens já são especialistas em tudo o que diz respeito à internet e à IA.
A realidade, porém, mostrou o contrário: “Existe essa crença de que, por terem nascido na era digital, os jovens já sabem tudo sobre tecnologia, e isso não é verdade”, afirma. O que ela percebe — e confirma em conversas com professores e especialistas — é que muitos meninos e meninas usam ferramentas digitais sem realmente entender como funcionam, quais são seus limites e, principalmente, como podem influenciar suas decisões.
Mas Os Códigos de Sofia não se limita a revelar a “caixa-preta” da IA para mostrar os mecanismos ocultos sob a superfície. Também convida a refletir sobre nosso papel como seres humanos em um mundo cada vez mais mediado por algoritmos. Santos resume: “Não se trata apenas de ensinar sobre inteligência artificial, mas de provocar reflexões sobre como pensamos, decidimos e interagimos com as máquinas”.
A criadora do projeto comprovou isso na prática. Santos compartilha histórias que mostram como, às vezes, um exercício simples pode provocar uma mudança profunda na forma como os participantes se relacionam com a tecnologia. Uma de suas histórias favoritas aconteceu durante uma atividade com a primeira carta de Sofia. Os estudantes estavam tão imersos na dinâmica que a professora facilitadora propôs que escrevessem uma carta-resposta para a própria Giselle, contando suas impressões. Foi então que uma aluna levantou a mão e fez uma pergunta inesperada: “Por que eu contaria algo da minha vida para uma pessoa estranha?”
Para Santos, esse momento resume o propósito da iniciativa. Não se trata apenas de entender como funcionam os algoritmos ou o que é aprendizado de máquina; trata-se de tomar consciência do que compartilhamos, com quem compartilhamos e como esses dados podem ser usados — para o bem ou para o mal. Em um mundo onde publicar detalhes pessoais se tornou quase automático, essa pergunta — tão simples quanto poderosa — funciona como um alerta. Porque sim: “Por que eu contaria algo da minha vida para uma pessoa estranha?” pode ser o ponto de partida para uma alfabetização crítica sobre os riscos e responsabilidades de conviver com a inteligência artificial.
A grande aposta: uma metodologia offline e uma narrativa interativa
Quando se pensa em qualquer projeto que envolva inteligência artificial, um dos primeiros pressupostos é a necessidade de computadores (preferencialmente modernos), softwares especializados, acesso à internet e dispositivos móveis. No entanto, Os Códigos de Sofia rompe com essa lógica: só são necessários recursos analógicos, como cartas, fichas ou guias impressos.
Na prática, isso se traduz em uma série de atividades e aventuras narrativas que os participantes devem resolver em equipe. Tudo começa com uma carta (impressa, claro), na qual Sofia — uma personagem fictícia que atua como guia, narradora e cúmplice nessa jornada pedagógica — lança perguntas e apresenta conflitos.
Pode ser um enigma lógico que ilustra como um algoritmo de recomendação escolhe um produto em vez de outro, uma dinâmica de papéis que mostra como o viés de dados pode influenciar decisões de uma suposta “máquina”, ou debates sobre a ética de coletar informações sem consentimento. Em cada uma dessas dinâmicas, a IA funciona como fio condutor, enquanto os participantes refletem sobre sua relação com a tecnologia.
“Não se trata apenas de ensinar sobre inteligência artificial, mas de provocar reflexões sobre como pensamos, decidimos e interagimos com as máquinas”.
Un recurso flexible para cualquier entorno
Una de las mayores virtudes de esta iniciativa radica, en buena parte, en su flexibilidad y capacidad para adaptarse a múltiples contextos. Aunque Santos es profesora, explica que los facilitadores no necesitan ser docentes de profesión ni expertos en IA para implementar el proyecto. “Nadie tiene que ser especialista en IA; la metodología está pensada para que uno pueda aprender junto con los estudiantes”.
Esto significa que puede aplicarse en las aulas de un colegio público en la periferia de São Paulo, en una escuela privada de alto perfil, en un centro cultural de un pequeño pueblo o incluso en la sala de estar de una familia interesada en el tema. “El proyecto está diseñado para ser accesible y adaptable”, confirma su creadora. Cada sesión se convierte en un lienzo en blanco para que los facilitadores elijan qué temas o actividades les resultan más relevantes. Desde el sesgo algorítmico hasta la relación entre IA y privacidad, todo puede debatirse según las necesidades y el contexto cultural.
De hecho, Santos destaca que “Los Códigos de Sofía” es un “disparador de conversaciones”. “El objetivo es que cada comunidad tome el material y lo adapte a sus propias realidades. No decimos ‘así se enseña IA’, sino ‘este es un punto de partida para hablar de IA y sus implicaciones’”. En muchas comunidades, según relata, las discusiones sobre cómo se emplean los datos y los algoritmos cobran un sentido muy práctico: “Para algunos estudiantes, hablar de sesgo algorítmico es prácticamente hablar de sus propias oportunidades en la vida”.
Y no es una exageración. Aunque los algoritmos nunca son neutrales, en algunos contextos su impacto resulta especialmente desigual: pueden acentuar desigualdades existentes, al influir en decisiones sobre becas, empleos, seguridad o acceso a servicios. Por eso, para estudiantes de comunidades históricamente marginadas, entender cómo funcionan estos mecanismos no es solo aprender sobre tecnología: es entender cómo pueden ser excluidos o favorecidos, cómo se construyen sus oportunidades (o sus límites) dentro del mundo digital.
Sustentabilidade: um modelo de “pague o quanto quiser”
Embora “Os Códigos de Sofia” se baseie na ideia da gratuidade, sua criadora está consciente de que manter um projeto com essas características a longo prazo exige apoio e recursos. “O modelo nasceu da vontade de tornar o projeto acessível sem limitar sua continuidade”, explica Santos. Por isso, ela adotou um esquema de “pague o quanto quiser”: a iniciativa está disponível gratuitamente, mas quem tem condições ou deseja contribuir, pode fazê-lo com uma doação voluntária. Além disso, são estabelecidas parcerias com organizações que enxergam valor na educação como ferramenta de transformação social.
Esse modelo, no entanto, enfrenta seus próprios desafios. O Brasil, como muitos outros países, apresenta realidades socioeconômicas muito diversas, e nem todas as pessoas estão acostumadas a pagar por recursos educacionais geralmente associados à gratuidade. Ainda assim, Santos se mostra otimista: “O desafio é garantir que o projeto continue crescendo. Mas, ao mesmo tempo, não queríamos restringi-lo apenas a quem pode pagar. Nossa prioridade é manter a experiência aberta, focada em garantir o acesso das pessoas à alfabetização em IA.”
Um mapa com várias “temporadas” e novas temáticas
Para estruturar a progressão dos conteúdos, Santos optou pela metáfora das “temporadas”. A primeira temporada é dedicada aos fundamentos da IA e ao pensamento crítico. Já a segunda — assim como as futuras edições — trará à tona temas mais específicos, como as relações sociais mediadas por telas, o cyberbullying e a perspectiva decolonial da tecnologia. Segundo Santos, a proposta é que cada etapa aprofunde um tema central e apresente novas maneiras de explorar a convivência com as telas.
Essa abordagem em etapas permite que os participantes se aprofundem em temas cada vez mais complexos, à medida que se sentem confortáveis com a dinâmica. Além disso, Santos aspira que a iniciativa evolua junto com os debates públicos em torno da IA. “Conforme a sociedade vai discutindo certos temas ou surgem novas descobertas, temos a oportunidade de criar conteúdos que enriqueçam esse debate”, conclui.
Olhar para o futuro: conselhos e reflexões
Com os resultados já observados nesta primeira fase de “Os Códigos de Sofia”, Santos sente que a iniciativa apenas arranhou a superfície do que pode vir a ser. Ela se empolga com a ideia de ver o projeto crescer, e, sobretudo, gerar consciência suficiente para que a IA não seja vista como algo alheio ao ser humano. “A IA na educação não é apenas sobre novas ferramentas, é repensar a experiência de vida de forma profunda e holística”, explica.
Para quem deseja iniciar projetos educacionais inovadores, especialmente no campo da IA, Santos recomenda não se deixar intimidar pela complexidade técnica e, em vez disso, começar pelo “para quê”: “Não se deixem paralisar pelo medo. Comecem pelo impacto, não pela tecnologia. Se há um problema educacional, vejam se a IA pode fazer parte da solução”, afirma. Ela também convida a valorizar as pessoas acima da simples integração de dispositivos: “A tecnologia sozinha não transforma a educação, mas educadores preparados, sim. E, acima de tudo, não tenham medo de experimentar.”
Uma experiência sem tomadas (mas cheia de conexões)
Diante de um modelo educacional em que as palavras “digital”, “virtual” e “tecnológico” dominam as manchetes, “Os Códigos de Sofia” surge como uma lufada de ar fresco. Não por se opor à tecnologia, mas por resgatar a essência do que todo processo de aprendizagem deveria ser: a construção do conhecimento por meio da reflexão, do diálogo e da curiosidade. A iniciativa, idealizada por Giselle Santos, rompe com a tradição da IA confinada em laboratórios e repleta de fórmulas indecifráveis. Em seu lugar, propõe uma jornada analógica e colaborativa, acessível a qualquer comunidade.
Talvez o ensinamento mais valioso que essa iniciativa nos deixa seja a necessidade de deixar de ser apenas espectadores na era digital. Ao prescindir das telas, Santos nos lembra que a construção do conhecimento sobre tecnologia depende, em última instância, da capacidade humana de questionar, dialogar e colaborar. Talvez esse seja o “código” mais importante revelado por Sofia: nossa própria habilidade de aprender e criar, mesmo quando as luzes do monitor estão apagadas.