Começar do “zero”

No final dos anos 1950, o filósofo Nelson Goodman, apaixonado pelas artes, começou a se perguntar sobre a natureza do conhecimento artístico: como pensamos ao interpretar, observar ou criar? Quais processos mentais estão envolvidos na prática artística? Podemos ensinar esses processos?
Convencido de que o conhecimento artístico era tão complexo e valioso quanto o científico, Goodman impulsionou, em 1967, um projeto interdisciplinar cujo nome, “Zero”, refletia sua premissa: o conhecimento sobre educação artística era praticamente nulo.
Essa pequena equipe começou explorando perguntas aparentemente simples, como quais sinais visuais permitem perceber uma forma cúbica ou como a sensibilidade artística se desenvolve nos primeiros anos. Também trabalharam com artistas de diversas disciplinas para analisar o pensamento profundo necessário para a produção criativa de qualidade.
Das artes à aprendizagem humana
Com o tempo, o projeto evoluiu para estudar dimensões mais amplas da aprendizagem humana. Assim, o que começou como um estudo sobre conhecimento artístico transformou-se em um laboratório de ideias sobre inteligência, compreensão, pensamento, criatividade, ética e cultura.
Figuras como Howard Gardner, que mais tarde desenvolveria a teoria das inteligências múltiplas, e David Perkins, matemático e especialista em inteligência artificial, ampliaram o escopo do projeto. Seu interesse passou a abordar perguntas mais amplas. Por exemplo: o que significa compreender profundamente algo? Quais condições permitem que esse tipo de compreensão se desenvolva? O que faz uma pessoa pensar de maneira crítica, criativa ou flexível? Esse tipo de pensamento pode ser ensinado?
As respostas levaram ao desenvolvimento de iniciativas que hoje são referência global, como Understanding by Design, Agency by Design, GoodWork Project e os estudos sobre competências globais. Mas talvez a contribuição mais influente, e a mais aplicável à sala de aula cotidiana, tenha sido o desenvolvimento do pensamento visível e, dentro dele, as rotinas de pensamento.
Uma reviravolta: a aprendizagem é uma consequência do pensamento
Um dos princípios centrais do Project Zero é que a compreensão profunda não é uma acumulação de dados, mas a capacidade de usá-los, analisá-los, reinterpretá-los e transferi-los para novas situações. Nas palavras de David Perkins: “É possível ter muita informação sobre algo e, ainda assim, entender muito pouco.”
Esse diagnóstico não é trivial. Ele implica que as práticas tradicionais centradas na memorização estão desalinhadas com a aprendizagem real. Os estudantes podem lembrar uma data histórica ou uma definição científica, mas esquecer seu significado em poucas semanas porque nunca tiveram que pensar de forma significativa sobre aquilo.
Por isso Perkins insiste em duas perguntas essenciais:
- O que ensinamos?
- Como ensinamos?
Sua tese é que, se queremos uma educação realmente significativa, não basta transmitir conteúdos: é preciso ensinar formas de pensar. E, para isso, precisamos de ferramentas que tornem visível o que acontece na mente do estudante.
Pensamento visível
O conceito de pensamento visível surge da observação de um problema frequente: a maior parte do pensamento realizado pelos alunos é invisível. Eles raciocinam em silêncio, interpretam em silêncio, inferem em silêncio. E, quando o processo é invisível, nem o professor pode avaliá-lo, nem o aluno pode compreendê-lo.
O pensamento visível propõe uma mudança fundamental: exteriorizar o pensamento para que possa ser analisado, dialogado e refinado. Isso pode ser feito através da fala, do desenho, de mapas conceituais, de metáforas, de discussões guiadas. Mas o Project Zero encontrou uma forma especialmente eficaz de fazer isso: as rotinas de pensamento.
O que são rotinas de pensamento?
As rotinas de pensamento são procedimentos curtos, estruturados e repetíveis que ajudam os estudantes a ativar processos mentais específicos. São como pequenos “interruptores cognitivos” que fazem o pensamento avançar de um modo particular: observar, interpretar, inferir, conectar, justificar, comparar, sintetizar.
Uma rotina não busca a resposta correta, e sim a qualidade do raciocínio. O importante não é o que o estudante pensa, mas como ele pensa.
As rotinas funcionam como um treino diário do pensamento e ativam processos cognitivos fundamentais como metacognição (obrigam o estudante a tomar consciência de como pensa), aprofundamento (favorecem a conexão entre ideias), transferência (preparam para usar a aprendizagem em novos contextos), múltiplas perspectivas (ensinam a olhar um fenômeno por diferentes ângulos) e o raciocínio baseado em evidências: exigem justificar ideias.
Com a prática contínua, os alunos desenvolvem hábitos intelectuais mais sólidos: observam melhor, perguntam mais, justificam melhor e escutam de maneira diferente.
De Harvard para a sala de aula: algumas rotinas de pensamento para aplicar
Embora o Project Zero tenha desenvolvido dezenas de rotinas, a experiência em salas de aula mostrou que algumas são especialmente úteis por sua simplicidade, versatilidade e capacidade de gerar pensamento visível em poucos minutos. São ferramentas que qualquer professor pode integrar em seu planejamento diário sem precisar mudar completamente sua maneira de ensinar.
A seguir, apresentamos um breve resumo das mais relevantes. O site do Project Zero tem uma Caixa de Ferramentas onde qualquer professor interessado pode encontrar inúmeras rotinas classificadas por categoria de pensamento e dicas para usá-las.
O que te faz dizer isso?
Às vezes, um aluno levanta a mão, diz algo com segurança e o resto da turma concorda sem pensar. Mas quando o professor pergunta “O que te faz dizer isso?”, o ar muda. A afirmação fica suspensa por alguns segundos, como se precisasse ser desvendada. O aluno dá um passo atrás, busca a evidência que não tinha explicitado, examina novamente a imagem, o texto ou sua memória. “Digo isso porque…”, começa ele, e o que vem a seguir é quase sempre mais interessante que sua primeira resposta. Às vezes seu raciocínio é sólido; outras vezes se desfaz quando olhado de perto. Mas esse é o ponto: o pensamento deixa de ser automático e se torna deliberado. Nesse instante, a sala de aula deixa de premiar a rapidez e passa a premiar a lucidez.
Ver – Pensar – Perguntar
A turma observa uma fotografia. Por alguns segundos ninguém fala: apenas olham. Primeiro descrevem o que veem, sem interpretar. É um exercício de humildade cognitiva: aceitar que sabemos menos do que imaginamos. Depois vem o “pensar”, aquele território onde cada gesto, cada sombra, cada detalhe insignificante vira uma pista. Finalmente surge a pergunta inevitável: “O que mais preciso saber?”. Essa última parte, a pergunta, é a que transforma a aprendizagem. Já não se espera que o professor tenha todas as respostas. São eles que abrem a porta da curiosidade.
Pensar – Questionar – Explorar
Em algumas ocasiões, antes de começar um tema, os alunos acreditam que já sabem do que se trata. Pensam que “eletricidade” é tomada ou que “Idade Média” é castelo. Quando lhes pedimos para escrever o que acreditam saber, descobrem os limites desse conhecimento fragmentado. Depois vêm as perguntas: algumas ingênuas, outras surpreendentemente profundas. E, de repente, a sala toda vira um mapa de inquietações compartilhadas. Explorar já não é uma tarefa imposta, mas um caminho que eles próprios traçaram. O que antes era currículo agora é viagem.
Pensar – Juntar-se – Compartilhar
Há dias em que uma pergunta se torna grande demais para ser pensada sozinho. Nessas horas, os estudantes tiram um minuto, apenas um, para organizar as ideias em silêncio. Depois se juntam em duplas e comparam seus raciocínios como quem compara mapas do mesmo território. Às vezes concordam; outras não. Mas, ao final, quando compartilham com a turma, as ideias já não são individuais: estão refinadas, lapidadas, quase iluminadas pelo contraste. O que poderia ter sido uma resposta tímida vira uma reflexão coletiva. E o professor deixa de ser o centro do conhecimento para se tornar testemunha de um pensamento construído por todos.
Círculos de pontos de vista
Um conto, uma pintura, um conflito histórico: qualquer um deles se transforma quando os alunos os observam a partir de diferentes perspectivas. Um dia são camponeses da Revolução Francesa; outro, testemunhas silenciosas de uma cena literária. Cada perspectiva oferece uma verdade parcial e, juntas, revelam a complexidade. O mais surpreendente é que, quando voltam à própria voz, o olhar já não é o mesmo. Entenderam que ninguém vê tudo, que o mundo se fragmenta em múltiplas versões e que ouvir o outro não é cortesia, é inteligência.
Eu pensava – Agora penso
É uma rotina que parece simples, quase ingênua. Mas é uma das que mais provoca silêncio. Os estudantes olham para trás e descobrem que já não pensam da mesma forma. “Eu costumava acreditar que…”, escrevem, como quem confessa uma ingenuidade. “Agora penso que…”, acrescentam, e a transformação aparece em duas linhas. Nem sempre é uma grande mudança; às vezes são pequenos deslocamentos que só se percebem quando alguém obriga a parar. Mas esse exercício de olhar para o próprio pensamento talvez seja a aprendizagem mais profunda: perceber que pensar não é um estado fixo, mas um movimento.
Ponte 3–2–1
Antes de começar um projeto, os alunos anotam três ideias, duas perguntas e uma metáfora. Nesse momento, tudo é provisório, às vezes desajeitado. Passam dias ou semanas; aprendem, erram, descobrem, interpretam. E então voltam àquele primeiro papel e constroem uma ponte para um segundo: três novas ideias, duas novas perguntas, uma metáfora diferente. Na comparação entre os dois papéis está a marca da aprendizagem. Não é preciso prova para ver: a ponte diz tudo. A compreensão tem forma, tem textura, tem evolução.
A Corda da Verdade
Imagine uma corda estendida no chão. Em um extremo, o “concordo”; no outro, o “discordo”. A turma escuta uma afirmação polêmica: “A tecnologia sempre melhora a vida”, por exemplo. Os alunos se posicionam em algum ponto da corda conforme sua opinião. E aí começa o mais interessante: cada um deve justificar por que está onde está. A sala se enche de nuances, de “depende”, de exemplos, de dúvidas razoáveis. Ninguém precisa vencer; a corda não é combate, mas espaço para pensar em voz alta. Ao final, alguns mudam de lugar, outros não. Mas todos aprendem que a verdade raramente é simples.
Um compromisso com o presente
O mundo que os estudantes habitam é complexo, ambíguo, veloz e cheio de informações contraditórias. Temos a responsabilidade de preparar os jovens para o desconhecido e o inesperado. E, para isso, não basta ensinar conteúdos: é preciso usar esses conteúdos como ferramentas para pensar, como ponto de partida a partir do qual os alunos analisam, interpretam, comparam, conectam e justificam.
Não se trata de aprender história para lembrar datas, nem ciência para repetir definições, nem matemática para aplicar fórmulas decoradas. Trata-se de pensar com a história, com a ciência, com a matemática; de fazer cada disciplina funcionar como um campo de treinamento intelectual em que o conteúdo não é o fim, mas o meio para desenvolver uma compreensão mais profunda.
As rotinas de pensamento são um convite constante para olhar a aprendizagem de outro lugar: o lugar onde o pensamento se torna visível, compartilhado e consciente.
Num momento em que a educação debate como responder aos desafios da incerteza, talvez a resposta mais sensata seja a que o Project Zero propôs há mais de cinco décadas: ensinar a pensar, porque é aí que tudo começa.


