Amanhece em alguma cidade latino-americana. No altiplano boliviano, numa favela brasileira, à sombra de um vulcão na Guatemala. Nestas escolas, não se ensina apenas letras e números. Em muitos casos, essas escolinhas são o cimento em torno do qual se constroem comunidades inteiras. Às sete da manhã, quando as primeiras crianças cruzam um portão enferrujado pelo tempo e pela falta de recursos, a diretora já está há uma hora preparando o café da manhã escolar. Não há secretária, nem orientador, nem pessoal de manutenção. Está ela. E estão, claro, eles: uma equipe de professores que faz o que pode com o que tem. E o que tem, muitas vezes, é apenas vontade.
Quem lidera a transformação educacional nesses contextos? Quem mantém a escola aberta quando tudo ao redor desmorona? O Relatório GEM 2025 Regional sobre América Latina e Caribe (América Latina: liderar para a democracia), publicado pela UNESCO, dá visibilidade e reconhecimento à figura dos líderes escolares. Destaca seu papel essencial em ambientes vulneráveis e sua atuação como agentes de mudança onde outros poderes se retiraram. Nas páginas desse relatório, a liderança passa da margem para o centro. E neste artigo, queremos contribuir para valorizá-la.
O que é liderança educacional e por que ela importa mais do que parece
Durante anos, falar de liderança escolar foi, em muitos círculos, uma forma elegante de se referir à gestão de estoques: quem assina os relatórios, quantos giz ainda restam, se o telhado está com goteira. Uma visão burocrática, herdada de modelos verticais, onde o diretor ou diretora era pouco mais que um administrador com chaves. Mas essa imagem, além de anacrônica, é profundamente injusta. A liderança educacional, quando é de fato exercida, não tem a ver com formulários. Tem a ver com o futuro.
O relatório se encarrega de desfazer esse mal-entendido. Propõe uma definição ampla e realista: a liderança escolar abrange dimensões pedagógicas, comunitárias, éticas e organizacionais. A liderança que importa e que transforma é aquela que impulsiona práticas docentes de qualidade, articula redes de apoio com as famílias, defende a inclusão e cuida dos vínculos. Em poucas palavras, é aquela que transforma a escola em um espaço de possibilidades.
E há dados que comprovam isso. O relatório mostra que, mesmo em contextos de alta vulnerabilidade, a presença de uma liderança sólida se traduz em melhores aprendizagens, menor evasão escolar e maior coesão social. A correlação é clara: quando uma escola conta com uma direção comprometida, bem acompanhada e com poder de decisão, as desigualdades se reduzem. O “milagre” é fruto do trabalho diário e de uma visão que não se dobra diante da escassez.
Liderar a partir da adversidade
Nas escolas rurais do Chocó, na Colômbia, quando chove (e chove muito), não chegam nem os barcos nem os professores. Mas a escola não fecha: a líder comunitária que atua como diretora abre assim mesmo, organiza aulas com as crianças da vila, reutiliza materiais, improvisa horários. No altiplano andino, há diretores que caminham vários quilômetros toda semana para visitar estudantes que cuidam do gado e não podem ir à escola todos os dias. Na periferia de Lima, há professoras que transformaram suas cozinhas em salas de aula digitais para que seus alunos não percam o vínculo com o aprendizado.
Esses não são casos excepcionais. São exemplos da liderança cotidiana exercida nas margens. Diretores, diretoras e docentes que lideram a partir da adversidade, onde não há estruturas de apoio nem recursos estáveis. E, mesmo assim, fazem escola. Como? Construindo comunidade, cuidando de suas equipes, adaptando tecnologias mínimas, negociando com as autoridades, mantendo viva a ideia de que aprender faz sentido—mesmo, e sobretudo, quando tudo ao redor desmorona.
A isso se poderia chamar de inovação educacional silenciosa. Não aparece em congressos nem em artigos acadêmicos. Mas muda vidas. Com orçamento zero. Sem gadgets futuristas: nasce da necessidade, do conhecimento do contexto, da criatividade pedagógica levada ao limite.
O relatório reconhece esse tipo de liderança como um dos motores invisíveis da equidade. Mas também aponta um problema estrutural: esses líderes não são formados nem acompanhados de forma adequada. A maioria assume seus cargos sem preparação específica, com pouco apoio institucional e sem espaços para compartilhar experiências. Em muitos casos, lideram na solidão, com uma carga emocional e operacional que beira o impossível.
Por que isso acontece? Porque o sistema ainda enxerga a liderança como uma função de controle, e não como uma alavanca de transformação. Porque, nas políticas públicas, as lideranças escolares raramente têm voz própria. E porque, muitas vezes, as grandes reformas—ávidas por resultados rápidos e visibilidade midiática—esquecem o essencial: sem líderes formados, reconhecidos e apoiados, nenhuma escola se sustenta.
Formação e acompanhamento: a dívida pendente com os líderes escolares
Ninguém entregaria um avião a um piloto sem treinamento. Nenhum cirurgião recebe um bisturi sem anos de prática supervisionada. E, no entanto, em grande parte da América Latina, um diretor ou diretora de escola recebe o leme de uma comunidade educativa inteira sem formação específica, sem mentoria, sem rede de apoio. Pede-se que liderem sem ter sido preparados para isso. E, além disso, que o façam em condições adversas.
É o que afirma o relatório: a formação em liderança educacional é frágil, fragmentada e, em muitos casos, inexistente. Em alguns países da região, o acesso à capacitação em liderança depende de iniciativas pontuais, muitas vezes externas ao sistema, sem continuidade nem integração com as políticas públicas. Dá-se prioridade ao controle administrativo em detrimento do desenvolvimento pedagógico ou comunitário. Como se liderar uma escola fosse uma questão de papelada.
Mas, como mostram os melhores exemplos, liderar uma escola é acompanhar os professores, resolver conflitos, traduzir políticas nacionais para realidades locais, gerir a escassez sem se deixar abater. Exige habilidades pedagógicas, emocionais e políticas. E, sobretudo, exige não estar sozinho.
Por isso, o relatório insiste numa palavra-chave: acompanhamento. Não basta oferecer um curso esporádico. É necessário construir trajetórias de desenvolvimento profissional, espaços de diálogo entre pares, redes de colaboração que rompam o isolamento. Trata-se de entender que a liderança não é inata nem mágica, mas uma capacidade que se cultiva, se aprende e se fortalece com o tempo e com apoio adequado.
O relatório também alerta para a ausência de dados sistemáticos: muitos países não coletam informações sobre quem lidera as escolas, como se forma, quais resultados alcança. Essa invisibilidade estatística reforça a invisibilidade política. O que não se mede, não se gerencia. E o que não se gerencia, continua sendo deixado ao acaso.
Focar no que importa: liderança, política e equidade
A agenda educacional na América Latina costuma falar de inclusão, qualidade e transformação. Palavras grandes. E necessárias. Mas muitas vezes desconectadas das condições reais em que operam as escolas. Entre o discurso técnico e a prática cotidiana há uma ponte que raramente se cruza: a da liderança escolar. O relatório é claro: se os sistemas educacionais querem avançar rumo à equidade, precisam focar no que realmente importa.
A liderança escolar não pode continuar sendo um apêndice menor das reformas educacionais. Ela é um fator estrutural. E, no entanto, em muitos países da região, os marcos normativos ainda não incluem políticas sólidas para o desenvolvimento profissional de líderes escolares. Apenas alguns sistemas contam com trajetórias claras de acesso, formação continuada e apoio institucional para a função diretiva. Em certos casos, a liderança é atribuída por rodízio ou antiguidade, sem critérios pedagógicos nem estratégias de acompanhamento.
O relatório também alerta para a ausência de dados sistemáticos: muitos países não coletam informações sobre quem lidera as escolas, como se forma, quais resultados alcança. Essa invisibilidade estatística reforça a invisibilidade política. O que não se mede, não se gerencia. E o que não se gerencia, continua sendo deixado ao acaso.
A boa notícia é que há (tímidos) sinais de mudança. Nos últimos anos, alguns países começaram a repensar o papel da liderança escolar dentro de suas políticas públicas. Foram criados programas-piloto de mentoria entre diretores, marcos de competências e até redes colaborativas. Ainda é pouco, mas mostra que a liderança pode deixar de ser uma figura solitária para se tornar uma força sistêmica.
Focar na liderança não significa ignorar outras variáveis: significa entender que toda política educacional se concretiza (ou fracassa) no espaço micro de uma escola. E que, nesse espaço, a liderança faz toda a diferença. Se a equidade educacional é um objetivo comum, formar, acompanhar e empoderar quem lidera as escolas precisa deixar de ser uma nota de rodapé. Deve estar no centro.
E agora?
A liderança escolar na América Latina e no Caribe tem sido, por tempo demais, um tema secundário. Invisibilizada nas estatísticas, negligenciada pelas políticas e sustentada, quase sempre, pelo compromisso individual de quem entende que educar é mais do que ensinar. O relatório lança um alerta claro: sem um investimento decidido em formar, acompanhar e empoderar os líderes escolares, a equidade seguirá sendo um horizonte distante.
O que se deve fazer agora é transformar diagnósticos em ação. Isso implica revisar os marcos legais, investir em formação contextualizada, estabelecer trajetórias profissionais claras e, sobretudo, reconhecer a liderança pelo que ela é: uma peça-chave do funcionamento educacional.
Também exige mudar o olhar. Deixar de pensar a liderança como uma função administrativa ou carismática e passar a vê-la como uma capacidade coletiva, situada, capaz de mobilizar comunidades inteiras.
O desafio é grande. Mas também não começamos do zero. Em centenas de escolas da região, esses líderes já existem. O que falta não é vontade: é política pública que os sustente.