
Antes de incorporar uma nova tecnologia, vale fazer uma pergunta fundamental: para que ensinamos? A inteligência artificial apenas colocou um espelho diante dessa questão. Quatro escolas espanholas (Aula Escola Europea, Nazaret Oporto, Santa Gema Galgani e Institució Igualada) decidiram reservar um tempo para pensar nisso. Com o apoio da EduCaixa, passaram um ano inteiro conversando, ouvindo e debatendo como conviver com essa nova presença que surge nas salas de aula.
O resultado foi um guia de uso construído coletivamente: Desenhando um Protocolo sobre IA no Centro Educativo. Um recurso para quem acredita que educar requer tempo, escuta e reflexão. Porque mesmo (e principalmente) com tecnologia, ensinar exige pensar com calma.
Um Convite Pouco Comum
Durante o ano letivo 2023–2024, quatro centros espanhóis aceitaram um convite incomum: parar para pensar. Fizeram isso com o apoio da EduCaixa, o programa educativo da Fundação “la Caixa”, que propôs um experimento raro nestes tempos acelerados: antes de decidir como usar a inteligência artificial na escola, perguntar para quê.
O objetivo era construir um protocolo próprio, a partir da reflexão interna. Para isso, cada centro participou de sessões com especialistas em ética, direito, ciência e liderança, e trabalhou com suas próprias equipes docentes para desenvolver uma visão compartilhada.
Ao longo do processo, cada escola encontrou sua própria forma de olhar para a IA. A Aula Escola Europea abordou o tema a partir da filosofia e da ética do conhecimento. O Nazaret Oporto focou na formação docente e no diálogo intergeracional. O Santa Gema Galgani apostou na liderança pedagógica compartilhada. A Institució Igualada priorizou dar protagonismo aos alunos. Quatro caminhos diferentes para a mesma pergunta: como conviver com a tecnologia sem perder a alma educativa?
O resultado desse acompanhamento foi, nas palavras dos próprios docentes, uma conversa contínua. Um guia para continuar pensando juntos. Um modelo aberto e replicável para ajudar escolas a pensar com mais critério.
Por que um Protocolo (e Não um Decálogo ou Guia de Uso)?
Quando a inteligência artificial começou a fazer parte das conversas escolares, muitas vozes sugeriram criar um decálogo: uma lista de normas, advertências e recomendações para controlar o tema. Mas os centros acompanhados pela EduCaixa preferiram outra coisa: pensar juntos antes de decidir.
Queriam construir acordos por meio do diálogo. Daí surgiu a ideia de elaborar um protocolo. Uma ferramenta que não impõe regras, mas abre um espaço de reflexão compartilhada. É elaborada em grupo, revisada e adaptada. Seu valor não está no documento, mas no processo que o torna possível.
A elaboração de um protocolo obriga a ouvir: os professores que temem perder seu ofício, os alunos que experimentam sem medo, as famílias que se perguntam qual é o espaço que resta para a intuição humana. E, a partir daí, construir acordos.
Essa ideia do protocolo como governança ética e pedagógica também se conecta aos princípios da UNESCO sobre o uso responsável da inteligência artificial e antecipa o espírito da futura Lei Europeia de IA (2026), que pedirá às instituições marcos flexíveis, dialogados e humanos.
Cinco Passos para Construir Seu Próprio Protocolo
Os quatro centros acompanhados pela EduCaixa seguiram um processo gradual, guiado, como já dissemos, pela reflexão e pelo diálogo. Antes de escrever uma linha sequer, as escolas aprenderam a se fazer perguntas: Qual papel queremos que a IA desempenhe em nossa escola? Quais valores devem orientar seu uso? Quais riscos queremos evitar e quais oportunidades queremos potencializar? Essas perguntas abriram o diálogo entre docentes, alunos, famílias e especialistas. O processo se desenvolveu em cinco etapas consecutivas (explorar, ouvir, definir, prototipar e avaliar), explicadas a seguir:
Passo 1. Explorar: Entender o Que a IA É (e o Que Não É)
O primeiro passo foi formar-se. Antes de decidir como utilizá-la, as equipes docentes quiseram compreender como funciona a inteligência artificial, suas limitações e suas implicações éticas, legais e ambientais. Assim, descobriram uma ideia essencial: a IA não pensa nem compreende — ela prevê padrões. Essa diferença ajudou a reduzir medos e expectativas irreais.
As sessões com especialistas ofereceram perspectivas complementares de áreas como filosofia, direito, ciência e educação, e ajudaram a entender que a tecnologia não é analisada apenas tecnicamente, mas também culturalmente.
Passo 2. Ouvir: Dar Voz à Comunidade Educativa
Depois de olhar para fora, os centros olharam para dentro. Consultaram, entrevistaram, debateram. Em grupos de trabalho, alunos, professores e famílias compartilharam preocupações e expectativas. Quais oportunidades enxergamos? Quais medos temos? O que realmente sabemos? As respostas refletiram diferentes pontos de vista. Alguns alunos estavam fascinados; outros temiam perder a autoria de sua aprendizagem. Os professores falavam de tempo, ética, pressão por estar “atualizado”.
Desse mosaico surgiu uma visão mais realista do que significa conviver com a IA. Ninguém tinha todas as respostas, mas todos tinham algo a dizer. E ali, entre vozes distintas, começou a formar-se uma comunidade mais consciente. O resultado dessa etapa foi um olhar mais coletivo e transparente sobre a IA na escola.
Passo 3. Definir: O “Para quê” Antes do “Como”
O passo seguinte foi formular a intenção comum. Não bastava falar de IA: era preciso decidir para que usá-la. Cada centro definiu seu propósito e seus valores orientadores. Alguns focaram na criatividade: usar a tecnologia para imaginar mais, não para fazer menos. Outros apostaram na personalização da aprendizagem ou no pensamento crítico.
O exercício obrigou as equipes a evitar a armadilha do “como”: qual plataforma, qual aplicativo, qual ferramenta. A EduCaixa insistia em uma frase que virou mantra:
“Primeiro o para quê, depois o como.”
Essa ordem fez toda a diferença. Colocar o sentido antes do instrumento permitiu que o protocolo não fosse apenas uma lista de usos, mas uma declaração pedagógica.
Passo 4. Prototipar: Escrever o Primeiro Rascunho
Com os objetivos definidos, chegou a hora de escrever. Cada escola elaborou um rascunho inicial de seu protocolo: um documento que reunia objetivos, limites, responsabilidades e um plano de formação.
O processo foi tão importante quanto o resultado. No colégio Santa Gema Galgani, por exemplo, criou-se uma equipe interdisciplinar para acompanhar os professores na integração da IA e avaliar experimentações pedagógicas. Outros centros incluíram capítulos sobre privacidade, autoria, avaliação e ética digital, conscientes de que ensinar também é cuidar.
O rascunho não era um produto final, mas uma primeira versão aberta à mudança: um texto vivo que seria aprimorado na prática.
Passo 5. Avaliar e Ajustar: Mantê-lo Vivo
O último passo foi aprender a nunca considerá-lo concluído. Os centros entenderam que o protocolo deveria ser revisado periodicamente. Ele deve ser atualizado a cada ano letivo, corrigido e adaptado a novas realidades.
Alguns centros organizaram seminários internos para compartilhar avanços; outros propuseram fóruns e oficinas abertas a famílias e estudantes. Essa revisão contínua transformou o protocolo em uma ferramenta útil para continuar aprendendo e se adaptando às mudanças. Mais que um documento fechado, tornou-se uma prática compartilhada.
Ao concluir o processo, os docentes concordaram em algo essencial: o valioso não foi o documento, mas a conversa que o tornou possível. Uma conversa que permanece aberta, porque ensinar, com ou sem algoritmos, sempre foi isso: uma forma de pensar juntos.
O Que as Escolas Piloto Aprenderam
Quando o ano terminou, as equipes participantes concordaram em algo que não estava no programa: o aprendizado mais valioso não foi sobre inteligência artificial, mas sobre educação.
A primeira descoberta foi clara e decisiva: antes de usar a tecnologia, é preciso entendê-la. A formação foi fundamental para perder o medo, ganhar confiança e tomar decisões com critério. A IA não elimina a necessidade de reflexão; ela a torna ainda mais necessária.
O segundo aprendizado teve relação com a liderança. Nenhum protocolo pode se sustentar se depender de uma única pessoa ou instrução. As escolas compreenderam que a governança da IA deve ser compartilhada e reflexiva — um trabalho coletivo no qual a direção acompanha e escuta, e cada professor assume um papel ativo na tomada de decisões.
Elas também entenderam que a IA não ameaça a identidade da escola. Pelo contrário: pode ajudar a reafirmar sua missão humanista. Ao falar sobre algoritmos, os centros redescobriram questões antigas: o que significa aprender, como se constrói o julgamento, qual é o valor da criatividade ou do erro.
E, talvez o mais importante: não existe um modelo único. Cada escola encontrou seu próprio ritmo, sua linguagem e sua forma de olhar para a tecnologia. O que as uniu foi a conversa: esse espaço comum onde se pensa, discute e recomeça. Falar de IA foi, na verdade, uma maneira de fortalecer a cultura pedagógica.
A Mudança Começa na Escola
A chegada da inteligência artificial obrigou a escola a repensar uma pergunta vital: o que significa ensinar e aprender? Por isso, mais que representar um risco ou uma moda, a IA é uma oportunidade para refletir.
Os protocolos que surgiram com o apoio da EduCaixa buscam fomentar a autonomia pedagógica. São ferramentas de reflexão coletiva, pensadas para que as comunidades educativas assumam um papel ativo na construção de seu próprio marco de atuação.
Cada escola que decide abrir esse debate já está exercendo uma forma de liderança educativa. E embora nenhuma lei ou modelo ofereça soluções perfeitas, o importante é não ficar parado esperando que outros definam o futuro da educação.


