“A inclusão não pode continuar sendo um acréscimo: deve ser o ponto de partida”

Como uma escola compete com uma gangue? O que a educação pode oferecer a um adolescente que ganha mais vendendo drogas do que indo à aula? Estamos oferecendo aos professores o apoio de que precisam? Nesta entrevista, Javier González, diretor do SUMMA e referência regional em políticas educacionais, nos convida a repensar os pilares sobre os quais se constrói a educação na América Latina. Com um olhar crítico, mas propositivo, ele fala sobre o valor do invisível, o poder do pedagógico sobre o instrumental e a urgência de voltarmos a nos perguntar para quê, para quem e como educamos.

“A inclusão não pode continuar sendo um acréscimo: deve ser o ponto de partida”

Javier González

Qual é o seu diagnóstico geral sobre o estado atual da educação na América Latina e no Caribe?

O panorama educacional da América Latina e do Caribe é preocupante e, ao mesmo tempo, complexo. Trata-se de uma região que avançou significativamente no acesso à educação, mas que continua apresentando enormes lacunas em qualidade, equidade e relevância. No SUMMA, trabalhamos com mais de 21 ministérios da educação da região, o que nos permite ter uma visão ampla e, ao mesmo tempo, detalhada. O que observamos é uma educação que, em muitos casos, não está garantindo os direitos fundamentais das crianças nem contribuindo suficientemente para o desenvolvimento de sociedades democráticas, coesas e equitativas.

Se olharmos para as últimas duas décadas, veremos um período de progresso entre 2003 e 2013, com melhorias econômicas, democráticas e sociais que se traduziram em certos avanços educacionais. No entanto, desde 2013, entramos em uma fase de estagnação ou até mesmo de regressão. Politicamente, os índices de democracia apresentaram queda; na esfera econômica, o crescimento mostrou-se lento; enquanto que, no campo social, observou-sea pobreza voltou a crescer em vários países. Essa realidade impacta diretamente a educação: menos recursos, menor prioridade nas agendas nacionais e mais tensões sociais que afetam o ecossistema escolar.

A isso se soma o baixo investimento em educação em muitos países. Durante a pandemia, por exemplo, vimos a prioridade do gasto público migrar para a saúde e a proteção social — o que era compreensível naquele contexto —, mas também ficou claro que a educação continua não sendo vista como um pilar inegociável do desenvolvimento. Essa fragilidade institucional em torno da educação deve nos preocupar, pois impede a formulação de políticas sustentadas e sustentáveis ao longo do tempo.

Quais seriam, em sua opinião, os principais desafios estruturais do sistema educacional?

Há muitos, mas quero me concentrar em três eixos: desigualdade, sentido da educação e núcleo pedagógico. Em primeiro lugar, a desigualdade é brutal. Não se trata apenas de renda, mas de acesso e qualidade educacional para certos grupos: crianças privadas de liberdade, estudantes com deficiência, populações rurais e indígenas, migrantes, meninas e adolescentes expostas à gravidez precoce, e pessoas LGBTI. Esses grupos estão sistematicamente em desvantagem. E mesmo quando conseguem acessar a educação, raramente ela atende às suas necessidades reais.

Em segundo lugar, há uma crise de sentido. Muitos jovens, especialmente no ensino médio, não encontram na escola uma proposta de valor que concorra com outras ofertas, como o narcotráfico ou as gangues. Se a escola só promete um futuro de baixos salários, diante de alternativas que oferecem renda imediata — ainda que arriscada —, é difícil manter os adolescentes motivados. Nesse contexto, o abandono escolar não é apenas uma decisão individual, mas a expressão estrutural de um sistema que não consegue se conectar com os jovens.

Por fim, o núcleo pedagógico está enfraquecido. Embora muitos países tenham adotado currículos baseados em competências, a realidade das salas de aula ainda é outra. As práticas pedagógicas são muitas vezes obsoletas, baseadas em memorização e descontextualizadas. A formação docente, tanto inicial quanto continuada, está desalinhada com os desafios atuais. Muitos professores não tiveram uma formação sólida em pedagogia — muito menos em inclusão ou no uso de tecnologias educacionais. É fundamental repensar todo o ecossistema de apoio ao docente.

Você mencionou várias vezes o conceito de “núcleo pedagógico”. Poderia aprofundar o que isso significa e qual é sua importância?

Claro. No SUMMA, adotamos e ampliamos a definição de Richard Elmore sobre núcleo pedagógico, que se baseia na interação entre o professor, o estudante e o conteúdo. Nós o representamos como um triângulo composto por três componentes: o que se ensina (o currículo), como se ensina (as práticas pedagógicas) e quanto se aprende (a avaliação). Esse triângulo deve estar em equilíbrio.

A evidência acumulada nas últimas décadas, tanto na América Latina quanto globalmente, mostra que o fator mais determinante para a melhoria das aprendizagens é o “como” se ensina. Ou seja, as interações humanas significativas entre professores e alunos. Práticas como metacognição, aprendizagem colaborativa e feedback formativo têm um impacto altíssimo. No entanto, esses enfoques são pouco praticados em nossas salas de aula.

Por isso insistimos tanto no acompanhamento pedagógico. Não basta capacitar os professores uma vez e deixá-los sozinhos. É necessário um sistema permanente de acompanhamento, com visitas regulares, mentoria, espaços de reflexão pedagógica. O caso de Sobral, no Brasil, é exemplar: o município conseguiu melhorar radicalmente seu desempenho educacional por meio de uma estratégia de acompanhamento pedagógico semanal e formação docente mensal. Esses modelos funcionam, mas exigem vontade política e compromisso institucional.

Acredito que estamos em uma nova etapa. A primeira onda da tecnologia educacional foi bastante limitada: linear, pouco personalizada, sem adaptabilidade real. Mas hoje, com o desenvolvimento da inteligência artificial, abrem-se oportunidades imensas.

Nesse cenário, qual você acredita ser o papel da tecnologia na melhoria educacional?

A tecnologia tem um papel fundamental, mas deve ser vista como um meio pedagógico, não como um fim em si mesma. Muitas vezes, milhões foram investidos em tablets ou softwares para as escolas sem uma estratégia pedagógica clara. É como colocar a carroça na frente dos bois. A tecnologia pode amplificar boas práticas, mas não substitui a interação humana nem resolve deficiências estruturais.

Dito isso, acredito que estamos em uma nova etapa. A primeira onda da tecnologia educacional foi bastante limitada: linear, pouco personalizada, sem adaptabilidade real. Mas hoje, com o desenvolvimento da inteligência artificial, abrem-se oportunidades imensas. As ferramentas adaptativas podem ajudar a personalizar a aprendizagem, oferecer feedback em tempo real e apoiar os docentes em sua prática. Isso é especialmente relevante para alunos que precisam de acompanhamento individualizado e para contextos em que o professor está sozinho diante de grande diversidade de estudantes.

Além disso, a tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para enfrentar os desafios da avaliação formativa. Hoje temos a possibilidade de implementar sistemas adaptativos que permitem conhecer, em tempo real, o avanço de cada aluno, ajustar o ensino e fornecer feedback de forma oportuna. Isso pode ser revolucionário, especialmente em contextos de alta heterogeneidade.

Falando de contextos diversos, você tem defendido uma tecnologia voltada para populações marginalizadas. Poderia explicar isso?

Com certeza. Um erro frequente ao introduzir tecnologia na educação é pensá-la apenas para o sistema regular. Mas se somarmos todos os chamados “nichos” — crianças em prisões, hospitais, com deficiência, em áreas rurais remotas — percebemos que eles não são tão nicho assim: representam uma parcela significativa da população. É justamente aí que a tecnologia pode fazer uma diferença radical.

Por exemplo, muitas crianças privadas de liberdade na América Latina estão sob custódia do Estado e sem acesso à educação. A inteligência artificial poderia permitir itinerários personalizados de aprendizagem e processos de reidentificação pró-social. O mesmo vale para escolas hospitalares ou comunidades bilíngues nas regiões andinas. Frequentemente somos pouco criativos para pensar esses cenários — e é justamente onde há maior potencial de impacto.

A chave está em pensar programas flexíveis, modulares, culturalmente pertinentes, que utilizem a tecnologia não apenas para transmitir conteúdos, mas para gerar vínculos, fortalecer identidades e abrir possibilidades de futuro. Não podemos mais continuar achando que a inclusão é um acréscimo. Ela deve ser o ponto de partida.

Como você avalia a formação docente em relação ao uso da tecnologia?

Muito deficiente. Nós acabamos de revisar e redesenhar os currículos de formação inicial docente em dez países do Caribe, e encontramos que a formação em tecnologia educacional é praticamente inexistente. Às vezes, por falta de recursos, é preciso priorizar outros conteúdos como os disciplinares ou o estágio, mas isso não justifica deixar de lado o digital.

Quanto à formação continuada, a situação é igualmente precária. Em muitos países, um professor é visitado pedagogicamente entre uma e quatro vezes por ano — e às vezes nenhuma. Eles estão sozinhos em sala de aula. A pandemia evidenciou isso: apesar de se falar muito em “nativos digitais”, descobrimos que muitas crianças não sabiam nem abrir um arquivo do Word. A desigualdade digital não é apenas de acesso, mas também de uso e de sentido pedagógico.

O que precisamos é de uma revolução na formação docente. Não basta oferecer cursinhos soltos. É necessário um sistema articulado de desenvolvimento profissional contínuo, com mentoria, trabalho colaborativo, recursos pedagógicos acessíveis e uso inteligente de dados. A tecnologia pode ser uma aliada nisso, mas não pode substituir uma política séria de desenvolvimento docente.

Quais condições você acredita que devem ser cumpridas para alcançar uma verdadeira transformação educacional?

Existem condições habilitadoras fundamentais. A primeira é o financiamento. Não podemos esperar milagres de escolas que não têm eletricidade ou água potável. A segunda é o tempo — tempo para que os docentes possam planejar, se formar, se reunir com seus pares. A terceira é o uso de evidências e dados. Muitos países não contam com sistemas de informação educacional robustos, o que dificulta a tomada de decisões.

E por fim, a articulação com as políticas públicas. No SUMMA, acreditamos que qualquer intervenção educacional deve estar alinhada com as prioridades dos governos. Trabalhamos de dentro, não de fora. Ou seja, não levamos programas “prontos”, e sim partimos das necessidades do país e co-construímos soluções com os ministérios. Esse é o caminho para garantir escalabilidade e sustentabilidade.

Para finalizar, que mensagem você deixaria para quem está desenhando programas educacionais com tecnologia na região?

Eu diria que pensem primeiro nas populações mais vulneráveis, e não por último. Que considerem a tecnologia como uma ferramenta a serviço da aprendizagem, não como um fim. Que apostem na qualidade pedagógica, na formação continuada dos docentes, no acompanhamento permanente. E, acima de tudo, que compreendam que os sistemas educacionais não mudam apenas com evidências, mas com decisões políticas. É preciso saber onde, quando e como incidir para que essa evidência se transforme em política pública. Porque só assim poderemos garantir o direito à educação para todos e todas.

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