Há alguns anos, uma máquina começou a escrever como se pensasse — e nos deixou boquiabertos: fazia isso bem, com sentido e em uma velocidade impressionante. O ChatGPT, lançado em novembro de 2022, estava longe de ser o início da inteligência artificial. Mas marcou uma nova era na percepção de seu alcance.
Como acontece com toda novidade tecnológica, a recepção da IA generativa se deu entre dois extremos: os entusiastas, que a viam como solução para todos os problemas da civilização, e os pessimistas, que a consideram a semente de todos os males. Entre ambos, a educação latino-americana observa e testa.
Nesse contexto, a Fundação ProFuturo e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) publicaram um estudo conjunto, A chegada da IA à educação na América Latina: em construção, que se propõe a levantar um mapeamento preliminar da situação da IA na educação latino-americana: iniciativas, avanços, riscos, oportunidades. Nada definitivo. Apenas uma tentativa de organizar o ruído.
O relatório oferece uma primeira fotografia de um processo que está apenas começando: a chegada — lenta e desigual — da inteligência artificial às salas de aula da América Latina. A partir de suas descobertas, este artigo explora o que está sendo feito, o que poderia ser feito, quais riscos não podem ser ignorados e quais decisões precisarão ser tomadas se a região quiser, de fato, usar essa tecnologia para transformar a educação.
Privadas, variadas e irregulares
Mapas importam. Às vezes não tanto por sua precisão e nível de detalhe, mas pelo que permitem imaginar. Ter um mapa, mesmo que incompleto, sempre ajuda a entender por onde estamos andando. Este mapeamento, que analisa 26 iniciativas desenvolvidas na região, tanto do setor privado quanto de políticas públicas e organizações sociais, mostra que há movimento: disperso, tímido e, às vezes, improvisado — mas real.
A maioria das propostas vem do setor privado. Startups brasileiras, chilenas, colombianas ou argentinas. Poucas do setor público. Menos ainda de organizações sociais. Muitas trabalham com o ensino de idiomas — com a IA atuando como tutora — ou com geração automática de conteúdo. Outras auxiliam professores na preparação de aulas ou na avaliação. E algumas poucas tentam algo mais ambicioso: gestão de dados, prevenção da evasão escolar e geração de alertas precoces.
As categorias de uso são variadas: assistentes de escrita e de aprendizagem de línguas, geradores de conteúdo educacional adaptativo, apoio à organização pedagógica, promoção de direitos ou sistemas de gestão educacional baseados em dados para evitar evasão.
O mais notável, porém, é a irregularidade. Alguns projetos, como o Teachy no Brasil ou o Platzi na Colômbia, mostram certo grau de maturidade. Outros estão apenas começando. No conjunto, o panorama revela mais uma intenção do que uma política: atores descoordenados, esforços nem sempre sustentados, desenvolvimentos ainda muito distantes das escolas rurais ou de contextos vulneráveis.
E, mesmo assim, algo se move. Como ocorreu com a imprensa, o rádio ou o vídeo educativo, a IA está se instalando nas escolas sem que ninguém saiba ao certo para quê. Com mais perguntas do que respostas. Mas também com uma intuição que convida — talvez à força — à esperança: desta vez, não se trata de escolher se queremos ou não surfar essa onda, mas de aprender, o quanto antes, a não sermos arrastados por ela.
O que a IA pode trazer às salas de aula latino-americanas?
Conteúdos enriquecidos e personalizados a baixo custo
Há décadas os sistemas educacionais da região repetem um lamento quase unânime: falta de materiais, conteúdos obsoletos, desconexão com os interesses dos estudantes. A IA generativa abriu uma fresta por onde pode entrar algo diferente.
Projetos como Flex-Flix (Argentina), HistorIA (Brasil) ou Knotion (México) exploram formas de criar conteúdos transversais, interativos, mais próximos da linguagem das redes do que dos manuais escolares. Vídeos com streamers gerados por IA, histórias adaptadas com personagens históricos ou sistemas que transformam uma música em aula de inglês (MusíGlota, no Chile).
Fora da região, o ritmo é outro. Plataformas como Diffit, Synthesia ou LuzIA já permitem traduzir, adaptar, reescrever, ilustrar e até dramatizar conteúdos educativos em segundos. Em teoria, isso poderia ampliar o acesso a recursos de qualidade a um custo muito baixo. Na prática, esse potencial ainda é desigual e, por ora, alheio a boa parte da América Latina.
Planejamento didático mais eficiente
Um professor dedica grande parte de seu tempo a tarefas invisíveis: planejar aulas, corrigir provas, escrever relatórios. Quase sempre sozinho. A IA oferece, talvez pela primeira vez, um acompanhamento para essas tarefas.
Assim, surgiram em alguns países projetos como o Ummia (Chile), RDV.IA (Argentina) ou Teachy (Brasil), que ajudam a criar planejamentos, rubricas, exercícios e atividades sob medida. Alguns já se integram aos currículos nacionais. Não substituem o professor, mas o apoiam, economizam seu tempo e oferecem ideias.
Nos Estados Unidos, modelos como MagicSchool ou EduGPT vão além: orientam, avaliam, retroalimentam. Alguns até “corrigem o corretor”.
Isso representa uma ameaça à profissão docente ou uma oportunidade de libertá-la da burocracia? A resposta, como sempre, depende do uso, do contexto, da formação e da intenção.
Tutorias digitais personalizadas
O grande sonho — e ao mesmo tempo o grande limite — da educação em massa sempre foi o mesmo: tratar cada aluno como único. A IA começou a mostrar que isso pode, ao menos em parte, ser possível.
Modelos internacionais como Khanmigo (Khan Academy) ou Socratic (Google) já interagem em tempo real com os estudantes. Identificam dúvidas, ajustam níveis, sugerem caminhos. Alguns reconhecem até a escrita manual.
Na América Latina, no entanto, esse futuro está distante. As iniciativas mapeadas ainda não conseguem desenvolver chatbots educacionais avançados. A região, mais uma vez, corre o risco de ficar com a versão beta.
Avaliação automática e gestão de dados
Avaliar muitas vezes é sinônimo de dar nota. Com sorte, de medir. Raramente de compreender. A IA pode mudar isso?
No Uruguai, a plataforma SEA+ já oferece avaliações adaptativas automatizadas, com retorno imediato. No Chile, a UPlanner usa dados para prevenir a evasão escolar. Na Argentina, o sistema de alerta precoce de Mendoza detecta trajetórias de risco.
Fora da região, a sofisticação é outra. Ferramentas como Gradescope, Zelexio ou EssayGrader já avaliam redações, competências e habilidades complexas. Corrigem em segundos, com critérios claros — ou pelo menos assim prometem.
O risco aqui é duplo: automatizar a avaliação sem repensar seu sentido ou delegar o julgamento pedagógico a uma caixa-preta algorítmica. Como se corrigir fosse apenas marcar erros, e não interpretar processos.
Riscos e dilemas ético-pedagógicos
Toda ferramenta educacional, mesmo as mais nobres, já foi usada para excluir. Com a IA, esse risco é estrutural.
Os sistemas mais avançados exigem conectividade estável, dispositivos modernos e alfabetização digital. Justamente o que falta nas comunidades mais vulneráveis da região. Existe, como alerta o estudo, o risco de uma “educação de segunda” potencializada por IA: mais barata, menos humana, mais desigual. A paradoxo é cruel: aqueles que mais poderiam se beneficiar de uma IA bem implementada são os que menos têm acesso a ela.
Há também os riscos invisíveis: algoritmos enviesados, perda de privacidade, dependência tecnológica. Quem treina a IA? Com quais dados? Quais vozes ficam de fora? Automatizar decisões pedagógicas sem revisão crítica é uma forma silenciosa de exclusão.
E depois vem a pedagogia. Ensinar não é apenas transmitir conteúdos. É acompanhar, escutar, conectar. Se esquecermos isso, teremos feito muito pouco com muito. A IA pode ser aliada, mas nunca o centro do ato educativo. Uma educação sem humanidade é simplesmente outra coisa.
El informe ofrece una primera fotografía de un proceso que apenas comienza: la llegada —lenta y desigual— de la inteligencia artificial a las aulas de América Latina. A partir de sus hallazgos, este artículo explora qué se está haciendo, qué se podría hacer, qué riesgos conviene no ignorar y qué decisiones habrá que tomar si la región quiere usar esta tecnología para transformar verdaderamente la educación.
odavía muy alejados de las aulas rurales o de los contextos vulnerables.
Y, sin embargo, algo se mueve. Como en su día ocurriera con la imprenta, la radio o el vídeo educativo, la IA se está instalando en las escuelas sin que nadie tenga del todo claro para qué. Con más preguntas que respuestas. Pero también con una intuición que invita, quizás a la fuerza, a la esperanza: esta vez, no se trata de elegir si queremos subirnos a la ola o no, sino de aprender, más pronto que tarde, a no dejarnos arrastrar por ella.
O relatório elaborado pela ProFuturo e pela OEI deixa algo evidente: a IA já está presente na região, mas de forma fragmentada, desigual e, muitas vezes, sem planejamento ou participação pública significativa. E, mesmo assim, há uma oportunidade.
Os desafios
Nos últimos 15 anos, a região fez esforços consideráveis na digitalização da educação. Distribuíram-se computadores, criaram-se plataformas, capacitaram-se professores. Mas, quando se fala em inteligência artificial, a distância é visível. Não por falta de ideias — o mapeamento do relatório comprova isso —, mas por uma combinação já conhecida: limitações materiais, descontinuidade política, ausência de planejamento e pouca coordenação entre os atores.
O primeiro desafio é elementar: infraestrutura e conectividade. Segundo o estudo, grande parte das escolas públicas latino-americanas não possui os recursos técnicos necessários para implementar soluções com IA. A eletricidade é instável em muitas áreas rurais. O acesso à internet, irregular. A situação é mais crítica justamente nos contextos que mais poderiam se beneficiar dessas tecnologias. Há, como aponta o relatório, um risco paradoxal: que a IA aumente a exclusão, por não poder ser implementada onde mais se precisa dela.
O segundo desafio é de governança e políticas públicas. O estudo identifica uma forte concentração de iniciativas no setor privado. Das 26 mapeadas, a maioria foi desenvolvida por startups ou empresas de tecnologia. O setor público aparece de forma mais tímida, e quase sempre vinculado a sistemas de alerta precoce — como é o caso do Ministério da Educação de Mendoza (Argentina) ou da plataforma SEA+ no Uruguai. Mas faltam políticas robustas, sustentadas e com uma visão regional. A IA não pode ser integrada ao sistema educacional sem uma estratégia clara e de longo prazo. Até agora, como adverte o relatório, há mais entusiasmo do que planejamento.
O terceiro grande desafio é a formação docente. Hoje, a grande maioria dos professores na América Latina não recebeu formação específica em IA. E o mais grave: em muitos países, nem sequer existem marcos de referência que definam o que os docentes devem saber sobre essas tecnologias.
Algumas plataformas privadas — como a Teachy ou a RDV.IA — oferecem ferramentas para planejamento de aulas ou criação de conteúdos. Mas sem uma base crítica, essas soluções correm o risco de se tornar apenas moldes prontos, sem pedagogia. A formação precisa ir além do domínio técnico: deve incluir pensamento computacional, ética algorítmica e uma compreensão profunda do que significa educar em tempos de IA.
Há ainda a questão da soberania tecnológica e cultural. Como mostra o relatório, muitas ferramentas utilizadas na região vêm de matrizes estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos. São produtos desenhados com outros currículos, outras línguas, outros pressupostos pedagógicos. Usá-los sem adaptação é aceitar que as decisões educacionais sejam tomadas fora. A América Latina não pode se limitar a importar soluções: precisa criar as suas próprias.
Outro ponto pouco discutido — mas essencial — é o modelo de financiamento e a colaboração entre setores. Até agora, o impulso da IA na educação veio do setor privado. Mas se os governos não articularem estratégias públicas, corre-se o risco de que as soluções sejam oferecidas onde há capacidade de pagamento, e não onde há maior necessidade. O relatório também destaca a quase total ausência de iniciativas desenvolvidas por organizações do terceiro setor ou sem fins lucrativos — que historicamente desempenharam um papel importante na inovação pedagógica na região. A IA, por enquanto, parece ser uma conversa de especialistas, não das comunidades escolares.
Por fim, há o desafio mais complexo: o marco ético e social. Quem desenha os algoritmos? Com quais dados eles são treinados? Quais vieses eles reproduzem? Como se protege a privacidade de estudantes e professores? Essas perguntas estão apenas começando a entrar no debate público. Mas precisam ocupar um lugar central em qualquer política educacional que pretenda integrar a IA com justiça.
Comecemos pelos planos
A inteligência artificial não vai resolver os problemas estruturais da educação na América Latina. Não eliminará a desigualdade, não substituirá a falta de professores, nem suprirá a necessidade de investimento contínuo que toda transformação exige. Mas pode — se for bem orientada — contribuir para enfrentar alguns desses desafios com ferramentas novas.
Isso exige políticas claras, professores formados, infraestrutura robusta e, sobretudo, uma ideia de futuro. Não qualquer futuro. Um que não delegue às máquinas aquilo que é indelegável: a tarefa de educar outros seres humanos.
O relatório elaborado pela ProFuturo e pela OEI deixa algo evidente: a IA já está presente na região, mas de forma fragmentada, desigual e, muitas vezes, sem planejamento ou participação pública significativa. E, mesmo assim, há uma oportunidade. As iniciativas mapeadas mostram que outra integração da IA é possível: contextualizada, inclusiva, pensada a partir da pedagogia — e não da tecnologia.
A IA é uma boa oportunidade, sim. Mas também é uma linha que não se deve cruzar às cegas. Como lembra o próprio título do estudo, sua chegada à educação na América Latina está ainda em construção. E quando o assunto é construir, é melhor começar pelos planos.