O crescente desenvolvimento das tecnologias digitais modificou profundamente a relação de crianças e adolescentes com o seu entorno. Desde o surgimento das primeiras consoles de videogames e dispositivos portáteis até as plataformas de aprendizagem virtual disponíveis atualmente, surgiram múltiplas oportunidades de aquisição de conhecimento que nem sempre são acompanhadas da supervisão adulta necessária. Podemos afirmar que as vantagens da educação digital superam seus riscos potenciais? Essa é uma pergunta que tem ocupado instituições públicas e privadas ao longo dos últimos anos.
À crescente preocupação sobre o acesso de crianças e adolescentes a conteúdos inadequados e à exposição prolongada às telas, situações que estão associadas a efeitos prejudiciais à saúde mental, soma-se a necessidade de atualizar os marcos jurídicos para adaptá-los às demandas de um cenário cada vez mais virtual.
Nesse contexto, em janeiro de 2024, o Governo da Espanha criou o Comitê de Especialistas para avaliar o impacto do ambiente digital na infância e promover medidas que protejam as crianças nesta nova realidade. Esse grupo, composto por 50 especialistas em áreas tão variadas como pediatria, psicologia, educação, direito digital e cibersegurança, se propôs a traçar um diagnóstico amplo sobre a relação entre crianças e tecnologia. Seu trabalho incluiu a análise de práticas favoráveis, a identificação de perigos e a oferta de propostas que possam ser aplicadas em diferentes âmbitos da sociedade, desde os lares e as escolas até a indústria tecnológica e as autoridades governamentais.
O valor social e educativo da tecnologia
O Comitê destaca em seu relatório a contribuição positiva das ferramentas digitais na formação dos mais jovens. Por exemplo, o acesso fácil e imediato a bibliotecas virtuais e plataformas interativas oferece a possibilidade de aprofundar conhecimentos em diferentes áreas. Além disso, a existência de conteúdos audiovisuais e aplicativos com fins pedagógicos aumenta a motivação dos estudantes, ao mesmo tempo em que promove a aquisição de competências digitais fundamentais.
A seguir, estão listados alguns exemplos citados no relatório, que mostram diferentes maneiras de utilizar as ferramentas digitais para fomentar o aprendizado, a inclusão e a interação de crianças e adolescentes em um ambiente cada vez mais conectado:
- Acesso ao conhecimento e à informação: As plataformas digitais multiplicam as oportunidades de aprendizado. Hoje, uma criança pode explorar materiais sobre ciência espacial ou praticar um idioma estrangeiro sem sair de casa.
- Desenvolvimento de habilidades críticas: Ao envolver os jovens na busca de dados e na resolução de problemas cotidianos com a ajuda da tecnologia, estimula-se o pensamento independente.
- Inclusão de alunos com necessidades especiais: Certos aplicativos são especialmente projetados para garantir que crianças com diferentes condições possam se integrar de forma mais ativa ao processo educativo.
- Adaptação ao estilo de aprendizado pessoal: A tecnologia permite um acompanhamento mais individualizado, ajustando recursos e ritmos de forma flexível.
- Intercâmbio global e cooperação: Conexões online favorecem a aproximação entre estudantes de diferentes contextos, enriquecendo sua perspectiva cultural e social.
Isso significa que todos estão preparados para aproveitar ao máximo essas ferramentas educacionais? A resposta não é simples, mas pode ser resumida assim: a tecnologia pode ser uma aliada no desenvolvimento de competências críticas e sociais se utilizada com a orientação correta.
Perigos associados à falta de supervisão
O relatório do Comitê de Especialistas destaca diversos riscos que surgem quando o uso das ferramentas tecnológicas ocorre sem o controle adequado. Entre eles:
- Conteúdos inadequados: A facilidade de acesso a materiais violentos, de caráter sexual ou que incentivem o consumo excessivo de bens e serviços aumenta consideravelmente na ausência de filtros apropriados.
- Impacto no bem-estar psicológico: O excesso de tempo em frente às telas está associado a quadros de ansiedade, depressão e distúrbios do sono, segundo pesquisas de várias universidades europeias citadas pelo comitê.
- Vício e perda de controle: Algumas plataformas são projetadas com elementos repetitivos que prendem os usuários mais jovens por longos períodos, reduzindo sua capacidade de autorregulação.
- Redução da interação presencial: O isolamento atrás de uma tela pode dificultar o desenvolvimento de habilidades sociais e comunicativas, que são essenciais para o crescimento de qualquer indivíduo.
- Uso indevido de dados pessoais: O relatório aponta preocupações com a coleta massiva de informações sobre menores de idade sem consentimento genuíno e transparente, violando o direito à privacidade.
Por tudo isso, o comitê reforça a necessidade de proteger crianças e adolescentes por meio de um marco regulatório que assegure o equilíbrio entre os benefícios da era digital e a segurança dos jovens usuários.
Medidas propostas para um ambiente digital responsável
Como resultado de seu trabalho, o comitê elaborou um relatório com 107 sugestões destinadas a organizar um espaço virtual seguro e enriquecedor. Algumas das mais notáveis incluem:
- Sistemas de verificação de idade e controle parental: Recomenda-se a implementação de metodologias avançadas que impeçam o acesso de menores a conteúdos inadequados para sua faixa etária.
- Alfabetização Midiática e Informacional (AMI): Propõem a inclusão de atividades didáticas voltadas ao uso crítico de redes sociais e buscadores, começando desde o ensino fundamental.
- Supervisão ativa em famílias e escolas: Destacam a necessidade de que adultos desenvolvam competências digitais para orientar os menores diante dos múltiplos estímulos encontrados na internet.
- Proteção da privacidade infantil: Ressaltam a importância de um marco normativo que limite a comercialização de dados de crianças.
- Bloqueio de mecanismos viciantes: Sugerem a proibição de práticas como as “loot boxes” em videogames e outras táticas que incentivam o consumo impulsivo entre os jovens.
- Observatório de Saúde Digital: Proposta para criar uma entidade responsável por monitorar o impacto da tecnologia na saúde mental.
- Seleção de ferramentas educacionais seguras: Advogam pela análise da qualidade e confiabilidade dos aplicativos antes de oferecê-los em instituições de ensino.
- Participação ativa da indústria: Recomendam que empresas assumam responsabilidades legais pela proteção dos menores.
- Acessibilidade para todos: Enfatizam o fortalecimento da inclusão de crianças com diferentes capacidades para evitar a exclusão.
- Revisão legal e de políticas públicas: Propõem a atualização frequente das leis para acompanhar o rápido avanço do ambiente digital.
- Promoção do bem-estar digital: Ressaltam a urgência de divulgar orientações claras sobre o uso equilibrado de telas e a importância do autocuidado.
- Proibição de publicidade personalizada: Defendem a interrupção de anúncios segmentados voltados para o público infantil.
- Limites de tempo de tela: Apontam a necessidade de estabelecer um número máximo de horas frente a dispositivos, com base em evidências científicas.
- Criação de ambientes amigáveis e seguros: Sugerem que plataformas direcionadas ao público infantil incluam mecanismos de proteção contra assédio e acesso inadequado.
- Apoio contínuo à pesquisa: Encorajam o financiamento de estudos sobre os efeitos da exposição tecnológica em diversas perspectivas.
- Incorporação da voz infantil e adolescente: Ressaltam a importância de incluir as opiniões de crianças e adolescentes na formulação de políticas digitais.
- Formação contínua de professores: Recomendam o treinamento de docentes para que orientem os estudantes no uso equilibrado da tecnologia.
- Estratégias contra o ciberbullying: Propõem iniciativas para promover a convivência digital e reduzir a violência virtual.
- Legislação adaptada aos novos desafios: Destacam a necessidade de regular ações específicas relacionadas à interação online e à proteção de dados.
- Responsabilidade compartilhada: Insistem que famílias, escolas, governos e empresas colaborem para proteger os menores e garantir um futuro digital livre de abusos.
“Um ato de equilíbrio entre o aprendizado e a segurança”
O documento final elaborado pelo Comitê de Especialistas, com mais de 400 páginas, apresenta uma ideia central: o uso da tecnologia na infância e na adolescência deve ser visto como um ato de equilíbrio entre o aprendizado e a segurança. Recomenda-se que as medidas regulatórias sejam complementadas por programas de capacitação voltados para pais, mães e educadores, além de incentivar uma cultura digital responsável dentro da indústria tecnológica. A supervisão, longe de ser um obstáculo, pode transformar-se em um fator que estimule a curiosidade das crianças enquanto protege seu bem-estar emocional e sua privacidade.
O objetivo, conforme destacado no relatório, é criar um ambiente digital que não exclua os jovens, mas que os convide a explorar novos conhecimentos e a desenvolver uma mentalidade crítica. Para alcançar isso, são necessárias ações concretas: leis eficazes, programas formativos de qualidade e um compromisso real de todas as partes envolvidas. Estaremos preparados, como sociedade, para dar esse passo? Se levarmos em conta os resultados de algumas experiências piloto apresentadas no relatório, o caminho pode ser promissor, desde que haja uma vontade compartilhada de avançar na mesma direção.
Se você deseja mais informações sobre o conteúdo deste artigo, aqui está o acesso ao texto completo do relatório.